O Pai Nosso de cada dia (47)
O Pai Nosso não é uma fórmula de oração: Jesus não o deu como texto a ser recitado. Ele é, antes, o modelo, o tipo de toda a oração, que nos permite, mediante a comparação de umas com outras, situar as diferentes orientações e intenções da oração e hierarquizá-las. A glória de Deus é pedida antes do pão de cada dia.
Diz-se muitas vezes que os três primeiros pedidos dizem respeito a Deus, e os outros três, ao homem. É uma informação inexacta. Os três primeiros pedidos referem-se simultaneamente à glória de Deus e à salvação dos homens. ‘Venha o teu Reino’: pedimos que Deus seja reconhecido no seu poder e na sua glória; mas o Reino de Deus inclui a nossa salvação, a sua glória é salvar-nos. ‘A glória de Deus’ escreve Santo Irineu, ‘é que o homem viva!’ Não podemos opor o ‘vertical’ (o interesse de Deus) e o ‘horizontal’ (o interesse do homem): como ocupar-nos de Deus sem nos interessarmos pelos seus filhos e pelo seu acto de salvação? Como ocupar-nos com os nossos irmãos sem vê-los na sua condição de filhos de Deus? Pedir o Reino de Deus é pedir que Deus seja manifestado na sua glória e esta glória é salvar-nos.
Pai nosso que estais nos Céus.
Antítese extraordinária: ‘Pai’ evoca proximidade, confiança, ternura, o ‘Pai’ – Abba que Jesus nos revelou: ‘nos Céus’ exprime a transcendência, o mistério inacessível. Deus está fora do nosso alcance.
Os três primeiros pedidos têm o mesmo objectivo. O primeiro pedido e o terceiro estão na forma passiva, que, na linguagem de Jesus, é o modo de convidar Deus a passar à acção. Não se pede que os homens obedeçam de boa vontade, mas que Deus realize a sua vontade. Só Deus pode cumprir o que lhe pedimos. É o que tentam exprimir os imperativos da tradução.
Santificado seja o teu nome.
O nome de Deus, na linguagem da Bíblia, é Deus mesmo, mais exactamente, a sua pessoa enquanto centro de culto. A fórmula vem de Ezequiel, que a usa várias vezes (Ez 20, 41; 36, 32..); para Deus, santificar o seu nome significa manifestar a sua glória, purificando o seu povo dos seus pecados e salvando-o. Pedimos-lhe, portanto, que passe à acção, que se revele como é, isto é, como salvador. E ele é o único que o pode fazer. A tradução ‘Faz-te conhecer como Deus’ exprime adequadamente esta ideiam mantendo ao mesmo tempo o aspecto de Nome.
Venha o teu reino.
Esta expressão é-nos familiar: Jesus usa-a muitas vezes no Evangelho. O reino realiza-se concretamente pela salvação dos homens; já o exprimem Isaías (Is 52, ) e alguns salmos (Sl 96, 10; 97, 1; 98, 6). A tradução ‘Faz vir o teu Reino’ corresponde melhor ao pensamento bíblico, revelar Jesus Cristo na parusia e ressuscitar-nos.
Seja feita a tua vontade.
A fórmula tem para nós, hoje, um sabor de resignação, de passividade. De outro lado, pensamos logo na oração de Jesus no Getsêmani, que é uma oração verdadeira e autêntica de aceitação da vontade de Deus. Mas o pedido do Pai Nosso é mais amplo. Para o Deutero-Isaías, por exemplo, a vontade de Deus é a nossa salvação. O que pedimos aqui é então que ele realize o seu desígnio de salvação: ‘Faz realizar-se a tua vontade’ que é de nos salvar a todos.
Assim na terra como no Céu.
Esta expressão significa muito mais que em toda parte’. Encontra-se realmente nela uma comparação entre um ‘lugar’ – chamado ‘Céu’ – no qual a vontade e o reino de Deus existem, e um lugar no qual eles ainda não existem – a terra – o lugar da liberdade para a prova, o lugar da tentação. O nosso pedido é então que tudo se realize na terra, à imagem do que é vivido no Céu.
Nos três últimos pedidos, exprime-se a experiência humana. Jesus conhece as nossas preocupações, os nossos fracassos, mas também as nossas esperanças, as quais demarcam o nosso caminhar para o estabelecimento do reino de Deus. Assim, depois das intenções fundamentais da oração crista, ele convida-nos a apresentarmos as solicitações, humildes e concretas, da nossa vida de cada dia.
Dá-nos hoje o pão do qual temos necessidade.
O termo grego que corresponde a ‘do qual temos necessidade’ é de tradução difícil, porque não se encontra fora deste texto. Foram propostas várias traduções. É claro, em todo caso, que não se trata de uma garantia para o futuro. Jesus convida-nos a pedir, dia por dia o alimento de que necessitamos. Com confiança, porque Deus é muito melhor do que todos os pais da terra, nenhum dos quais ‘daria uma pedra a seu filho, se este he pedisse pão’ (Mt 7,9). Deus alimentou outrora o seu povo no deserto, dia por dia, com o maná (Ex 16); ele ainda o pode fazer.
Perdoa-nos os nossos erros em relação a ti, como nós já perdoámos aos que tinham erros em relação a nós.
O verdadeiro obstáculo entre Deus e nós é o nosso pecado. Nós somos incapazes de retribuir plenamente a Deus o seu amor; devedores insolventes, somos incapazes de reparar o mal que causamos aos outros e a nós mesmos. Mas Jesus é a revelação viva do perdão de Deus, que é pura graça. Ele oferece-nos o meio de o acolher, sem ferir a nossa dignidade de homens, perdoando nós aos nossos irmãos, antes de pedirmos perdão a Deus.
E não nos exponhas à tentação, mas livrai-nos do tentador.
Este pedido é o mais difícil de traduzir: ‘não nos deixes entrar na tentação’, diz o texto grego. ‘Não nos submetas à tentação’ seria uma tradução infeliz: faria pensar que é Deus que nos tenta, o que seria falso. Por outro lado não podemos pedir a Deus que não nos deixe passar pela tentação, experiência inevitável, na qual a nossa liberdade se afirma. É uma lei da condição humana e o próprio Jesus se sujeitou a ela. ‘Faz que não cedamos à tentação’, seria talvez melhor dirigirmo-nos a Deus, esperando a sua acção e pedindo o seu socorro.
A oração é o acto de fé por excelência. Entrar no espírito do Pai-nosso é olhar tudo do ponto de vista de Deus. É confiar na sua graça, pondo ao mesmo tempo ao serviço desta todos os recursos da nossa inteligência e da nossa acção. A grandeza dos filhos de Deus é entrar de corpo e alma na obra do Pai.
(Cf. A. GEORGE, Leitura do Evangelho Segundo Lucas, Ed. Paulinas, S. Paulo, 1984, páginas 66-69).
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