Memória da Virgem Santa Maria do Rosário
O que deu ao Rosário a sua maior nitidez foi a sua
estrutura, e não me refiro à repetição ou ao agrupamento das orações. Refiro-me
à meditação orante sobre os mistérios da vida, morte e ressurreição de Cristo.
Ao contemplar esses mistérios, somos catequizados por eles. O Rosário não é
meramente rezado — ele ensina. Ele forma a mente na verdade e o coração no
amor.
E é precisamente por isso que, historicamente, foi
eficaz contra os cátaros (os albigenses). Os seus ensinamentos não eram apenas
moral ou filosoficamente incorretos — negavam a Encarnação, os sacramentos e a
bondade da própria criação. Aniquilavam o casamento e a procriação, e se uma
criança nascesse, não poderia ser batizada. O Rosário proposto por São Domingos
de Gusmão, mistério por mistério, desmantela esses erros não apenas por meio de
argumentos, mas conduzindo a alma à claridade luminosa da revelação divina.
Examinemos cada conjunto de mistérios e como eles se
opõem diretamente aos ensinamentos dos cátaros.
Os Mistérios Gozosos: Afirmando a Bondade
da Criação e da Encarnação
Os cátaros acreditavam que o mundo material era
maligno — uma prisão criada por um deus inferior ou espírito maligno. Os corpos
humanos deveriam ser objeto de fuga, não de santificação. O casamento, o parto
e até mesmo os sacramentos eram vistos como parte dessa ordem física corrupta.
Mas os Mistérios Gozosos declaram algo radicalmente
diferente:
A Anunciação – Deus se faz homem. Ele assume a carne.
Longe de fugir da criação, Deus entra nela. O anúncio do anjo Gabriel a Maria
refuta o próprio cerne da cosmologia cátara.
A Visitação – Maria, grávida do Filho de Deus, traz a
nova Arca para Isabel. João salta no ventre materno — uma criança ainda não
nascida reagindo à presença do Senhor Encarnado. A vida no ventre materno é
sagrada, não uma armadilha.
A Natividade – O Verbo se faz carne e habita entre
nós. Cristo não nasce em grandeza celestial, mas em uma família humana real,
com sofrimento e alegria humanos reais.
A Apresentação – Jesus é oferecido no Templo segundo a
Lei. Ele entra nos rituais e estruturas da Antiga Aliança, afirmando a
continuidade entre carne e fé.
A perda e o encontro no Templo – O Verbo encarnado
aprende, fala, escuta. Deus encarnado está entre os mestres. O aprendizado e a
razão humana não são armadilhas, mas caminhos para a verdade.
Cada mistério afirma a dignidade da matéria, do corpo,
das relações humanas, da aliança e da própria ideia de que Deus se torna
visível. Estes mistérios atingem o cerne do desprezo cátaro pelo mundo
material.
Os Mistérios Dolorosos: Abraçando o Corpo e a Cruz
Os cátaros rejeitavam a crucificação como algo
ilusório (já que acreditavam que Cristo não tinha um corpo real) ou moralmente
repugnante. O Jesus deles não sofreu, não morreu e certamente não ressuscitou
corporalmente.
Mas os Mistérios Dolorosos mostram um Deus que ama até
a morte:
A Agonia no Jardim – Cristo sente o peso do
sofrimento. Ele transpira sangue. Isso não é ilusão. O Deus Encarnado
experimenta pavor e tristeza como qualquer ser humano.
A Flagelação – O corpo não é mau, mas aqui ele é
ferido, açoitado, dilacerado para a nossa cura. O sofrimento físico de Cristo
redime o reino físico.
A Coroação de Espinhos – Mesmo na humilhação, a
Realeza de Cristo brilha. Os cátaros viam o sofrimento mundano como algo sem
sentido; mas para os cristãos, ele se torna redentor.
O Carregamento da Cruz – O caminho para o Calvário não
é de fuga, mas de abraço. A cruz não é evitada, mas aceita, santificada pelo
amor.
A Crucificação – Cristo morre uma morte real em um
corpo real. Há sangue, sede, agonia — e, em meio a tudo isso, perdão e
misericórdia. A cruz é o ápice da Encarnação, não um erro divino.
Esses mistérios confrontam corajosamente o dualismo
dos cátaros. Jesus não apenas parecia humano — Ele era humano. E Seu sofrimento
não foi um acidente — foi o meio pelo qual Ele salvou o mundo.
Os Mistérios Gloriosos:
Derrotando a Morte e Restaurando a Criação
Se os cátaros desprezavam o material, desprezavam
igualmente a ressurreição do corpo. Para eles, a salvação significava a fuga do
corpo, não a sua glorificação.
Mas os Mistérios Gloriosos revelam a verdade:
A Ressurreição – Jesus ressuscita corporalmente. O
túmulo está vazio. Ele come com Seus discípulos. A ressurreição não é uma
metáfora espiritual, mas uma vindicação de toda a humanidade de Cristo.
A Ascensão – O corpo humano de Cristo é levado ao céu.
A matéria não é deixada para trás — ela é ressuscitada.
A Descida do Espírito Santo – O Espírito desce sobre
apóstolos de carne e osso, fortalecendo a Igreja. A era da Igreja começa com
línguas, fogo e proclamação em praça pública.
A Assunção de Maria – O primeiro discípulo é levado ao
céu, em corpo e alma. Uma mulher, uma mãe, uma criatura de carne, é
glorificada.
A Coroação de Maria – Não como deusa ou abstração, mas
como Rainha do Céu — coroada, exaltada e ainda humana.
Este conjunto de mistérios silencia o medo cátaro do
corpo e do mundo. Mostra que a redenção não vem pela rejeição da criação, mas
pela sua recriação a partir de dentro. O corpo não é uma gaiola, mas um templo
destinado à glória.
Conclusão: Um Catecismo Vivo
em Contas
O Rosário é mais do que uma oração, torna-se uma
proclamação ou pregação. Cada Ave-Maria é uma batida de coração que ecoa as
verdades do Credo. Cada dezena é uma lição de Encarnação, Redenção e Glória.
Não é de se admirar que São Domingos tenha recorrido
ao Rosário para pregar a um povo cujas mentes haviam sido obscurecidas pelo
erro espiritual. Onde longos tratados teológicos falharam em tocar os corações,
o Rosário permitiu que pessoas comuns vissem Cristo com os olhos da fé.
Vale a pena notar que a estrutura do Rosário espelha a
estrutura dos Evangelhos. Não são apenas os ensinamentos de Cristo que são
destacados, mas a Sua vida. Os mistérios não são doutrinas abstratas, mas
momentos – momentos revelados que confrontam a falsidade ao revelar a
realidade.
Atualização
Hoje, há também heresias que circulam entre nós:
negação da Encarnação, rejeição da dignidade humana, confusão sobre o
sofrimento e desdém pelo corpo. E, no entanto, o Rosário ainda funciona – não
como magia, mas como meditação, formação e comunhão. Num mundo seduzido por
falsas luzes, o Rosário permanece uma tocha de fogo. São Domingos sabia disso.
Ele nos deu não apenas palavras para dizer, mas mistérios para viver. (Adaptado
de autor não identificado)
À margem 1
Quando Santo Afonso de Ligório já estava velho, doente
e em uma cadeira de rodas, um irmão leigo costumava levá-lo em sua cadeira de
rodas pelo claustro de seu mosteiro à noite para que ele pudesse tomar um pouco
de ar fresco. Conversando com o irmão, Santo Afonso perguntou-lhe:
- Já rezaste o seu terço hoje?
- Não me lembro – respondeu o irmão.
- Então, vamos rezá-lo agora – disse o Santo.
- Mas vossa Reverência já está tão cansado. Que
diferença faz se não rezarmos o terço por um dia? – protestou o irmão.
Santo Afonso respondeu:
- Se eu não rezasse o meu terço por um dia sequer,
temeria pela minha salvação eterna.
À margem 2
A festa de Nossa Senhora do Rosário foi instituída por
São Pio V em comemoração à vitória na Batalha de Lepanto, em 7 de outubro de
1571, contra os turcos que ameaçavam a Europa.
Em 1716, a festa foi estendida a toda a Igreja em
agradecimento pela derrota do Crescente Muçulmano na Hungria.
Antes do Vaticano II, os hábitos de muitas Ordens
religiosas tinham rosários pendurados em seus cíngulos, e os bons católicos
costumavam carregar o rosário consigo o dia todo. Era considerado não apenas um
item para contar as Ave-Marias, mas um objeto abençoado, o selo de uma ligação
especial da pessoa com Nossa Senhora. Muitas vezes, a mera presença física do
rosário repelia o Diabo e atraía graças especiais. Tornou-se o objeto religioso
clássico para lutar contra o Diabo.
O Rosário é assim uma corrente de oração e de união.
Através do Rosário nós estamos presos a Maria e Maria mantém-se unida a nós.
Ver também:
O terço de Fernando Pessoa
Cinquenta moedas de ouro
A vitória do Rosário
As contas do mês
Terços do Rosário
A melhor maneira de rezar
O Rosário em Portugal
Escada para o céu
O Rosário do Pe. António Vieira
O Pe. Dehon e o Rosário