SEGUNDO DISCURSO
ACERCA DAS LETRAS CRISTÃS[1]
Senhores,
Dirijo-me
aqui a amigos da nossa obra, a amigos da educação e da instrução cristãs; e nem
deveria deter-me a demonstrar a sua grandeza e a superioridade. Mas, nestes tempos
de agitação e de luta, a verdade é com frequência atacada, acusada,
desfigurada, a ponto de até aqueles que a conhecem serem obrigados a
reposicionar-se pela reflexão e pelo raciocínio, para não se deixar arrastar e
raptar pelo sofisma.
Todas
as nossas posições são sucessivamente atacadas. Os nossos adversários atacam
tanto a educação cristã, como o patriotismo cristão, como a moral cristã, como
as letras cristãs.
Hoje,
é sobre este último ponto que queremos aceitar o desafio. Comprazem-se em desacreditar
as letras cristãs e afirmar a pobreza e a inferioridade manifesta da nossa
literatura.
Ora
bem, nós pensamos o contrário que a literatura cristã não tem nada a invejar às
letras pagãs, e que se, por vezes, ela dá menos importância ao acabado da forma,
ela impõe-se infinitamente pela elevação do pensamento e pela pureza dos
sentimentos.
Assim
é com as letras cristãs com a arte cristã: As nossas grandes catedrais com as
legiões de santos dos seus portais e dos seus vitrais, são menos perfeitas do
que as do Partenon de Atenas e os seus frisos, mas o Partenon deixa a alma em
terra, ao passo que as nossas catedrais cristãs levam-na até ao céu.
Lancemos
o olhar à grande epopeia bíblica, às literaturas grega e latina, e por fim às
letras francesas.
É sempre
proveitoso seguir CRISTO num ou noutro dos seus triunfos; a este contacto a
alma cristã eleva-se, sente a sua grandeza e a sua nobreza; dela extrai
emulação, coragem e alegria; expande-se num hino piedoso de louvor e de glória
a DEUS e a CRISTO.
I
Nós
poderíamos responder sumariamente à objecção banal e por demais grosseira que
nos colocam cada dia a respeito do obscurantismo clerical e da ciência laica.
Bastará citar algumas linhas muito divertidas de um discurso de Monsenhor
Freppel aos alunos de uma instituição eclesiástica.
“É
verdade, dizia ele, que os vossos mestres não são laicos, para falar em calão
de hoje; mas, peço desculpa a uma parte do meu auditório, convém, não abusar
desta palavra convertendo-a em certificado de capacidade, e supor que basta
dizer-se laico para ser um homem instruído ou pertencer ao mundo eclesiástico
para não sê-lo.
Bossuet,
Fénelon, Malebranche, Massilon e Bourdaloue, sabiam supostamente ler e
escrever, e não eram laicos. Roger Bacon, Gervert, Albert o Grande, Copérnico e
Gassendi, para só falar de mortos, fazem muito boa figura nas ciências naturais
e exactas, e não eram laicos.
Por
outro lado, pretendo dizer que há ainda na França centenas de milhar de homens
que não sabem ler, nem escrever, e lamento acrescentar que são todos laicos.
Deixemos lá estes epítetos que não fazem sentido, que são até profundamente
ridículos, quando se trata do saber e da instrução. Apreciemos a ciência e a
virtude onde elas se encontram.”
Mas
a tese da superioridade das letras cristãs merece ser tratada com mais
amplitude, e de receber um maior desenvolvimento.
É
um campo sem limites aberto ao nosso estudo. Não faremos mais do que respigar,
tratando sumariamente alguns pontos indicados. Não bastou aos exploradores de
Israel levar aos seus irmãos do deserto alguns cachos maravilhosos para provar
a fecundidade da Terra Prometida?
Comecemos
por considerar a grande epopeia bíblica.
O
que é uma epopeia?
Não
é porventura um vasto poema que exalta a fé e os heróis das origens de uma
nação?
Pois
bem! Não é a epopeia bíblica o poema, que narra as lutas e os triunfos de
CRISTO para a fundação da Jerusalém celeste?
Há
como que três grandes actos nesta gesta, a mais sublime e a mais dramática que
se pode conceber. O primeiro é CRISTO prometido, prefigurado, esperado,
preparado. É todo o Antigo Testamento com a sua maravilhosa variedade.
O
segundo, é CRISTO realizado, vivo, morto, ressuscitado e conquistando o mundo
através da Igreja e da Eucaristia; no texto sagrado, é o Evangelho com os Actos
e as Epístolas.
O
terceiro, é o Triunfo definitivo de CRISTO na Jerusalém celeste com todos os
companheiros das suas lutas e das suas vitórias. E este acto foi antevisto pelo
apóstolo de olhar de águia, no seu Apocalipse.
São
Paulo, na sua magistral Epístola aos Hebreus, dá a chave do drama. Antes de
nós, diz ele, tudo era figura e preparação. Agora, as coisas encontram-se ainda
na sombra ou debaixo do véu, é o Reino de CRISTO escondido na Eucaristia e na
Igreja. Mais tarde, será a luz plena e nós veremos CRISTO triunfante.
E
como tudo é maravilhoso nesta epopeia sublime, perante a qual as outras me
parecem tão pequenas!
Que
variedade! E que unidade! Todo o poema canta a glória de CRISTO e dos seus
eleitos.
Pela
grandeza dos pensamentos, ninguém hesita em proclamar a eminente superioridade
da epopeia bíblica, mas pela própria forma literária, que livro oferece mais
esplendores e riqueza?
Reparemos
as suas diversas partes.
Primeiro
a obra de Moisés.
Moisés
escrevia mil anos antes de Heródoto, o primeiro historiador grego, muitos
séculos antes que algum poeta produzisse uma linha destinada à posteridade.
Bossuet
saúda Moisés “o mais antigo dos poetas e
o seu modelo, o primeiro dos historiadores, o mais sublime dos filósofos e o
mais sábio dos legisladores”.
Os
livros de Moisés impressionam-nos pela beleza dos quadros e descrições, e pelo
interesse tão dramático das narrações. Quem não se emocionou com o relato das
vicissitudes de José? É um drama completo cujo desfecho mostra o triunfo da
virtude.
Quem
não leu com interesse as narrativas movimentadas do êxodo do Egipto e os
milagres do Sinai? Moisés é aí, ao mesmo tempo, a testemunha, o herói e o
historiador. É poeta muito especialmente no seu cântico após a passagem do Mar
Vermelho e no discurso profético de Jacob.
Quanto
a acção de Moisés como filósofo e legislador excede a dos maiores génios do
paganismo, Platão, Licurgo, Sólon, Cícero!
Os
outros livros históricos da Bíblia, como os dos Juízes, dos Reis, dos Macabeus,
sem igualar os livros de Moisés, oferecem-nos no entanto autênticas belezas.
É
no livro dos Juízes que se lê o belo cântico de vitória de Débora, o apólogo
gracioso das árvores que escolhem um rei, e o episódio tocante da filha de
Jefté, reproduzido na Ifigenia dos gregos.
É
no livro dos Reis que se descreve a amizade tão emocionante de David e Jónatas,
junto da qual a de Oreste e de Pylade, de Castor e Pollux, empalidecem.
No
livro dos Macabeus, que sublime quadro da luta do patriotismo e da fé contra a
invasão estrangeira e a escravidão! Como Bruto e os Gracos são ultrapassados
por estes heróis!
Os
livros de histórias particulares, as hagiografias de Rute, Judite, Tobias e
Ester, oferecem-nos narrações atraentes e uma pintura fiel dos costumes da
época.
O
livro de Rute, atribuído ao profeta Samuel, é uma deliciosa écloga cuja
perfeição sem igual provocou a admiração do próprio Voltaire. Ele reconheceu
nela a simplicidade ingénua e comovedora que nenhuma cena de Homero seria capaz
de igualar.
O
livro de Tobias, o mais popular do Antigo Testamento, parece não ser mais do
que a recolha das memórias dos dois próprios Tobias. Ele reúne as graças de uma
amável simplicidade e de uma elevação tão celeste.
Os
livros Sapienciais deixam a perder de vista os livros análogos dos gregos.
Nestas páginas tão graciosas como profundas, todos os recursos da arte são
utilizados sem pretensões nem afectação. Não são figuras, alegorias, contrastes
e imagens umas atrás das outras. José de Maistre fazia notar como Sócrates era
pequeno ao lado do Livro da Sabedoria.
Mas
é sobretudo na poesia que a literatura sagrada mostra a sua excelência.
Bossuet
chamava os Salmos: “a mais divina poesia que jamais existiu.”
Não
foi nos livros sagrados que os poetas modernos encontraram as suas mais
sublimes inspirações? Eles mesmos apontaram esta fonte como o seu Parnaso e o
seu Peneo. Fontanes dizia: “O entusiasmo habita nas margens do Jordão.” Não é o
cenário onde estes cantos nasceram e formaram a expressão do entusiasmo duma
nação, também mais grandioso do que a solenidade dos jogos de Corinto ou de
Olímpia? Eram estas festas anuais da Páscoa, do Pentecostes e dos Tabernáculos,
em que todo um povo ia, com todo o ardor da sua fé, misturar as torrentes das
suas vozes inumeráveis com os concertos da harpa e do saltério, enquanto os
sacerdotes imolavam as vítimas e o Pontífice levava misteriosamente o incenso
ao Santo dos Santos.
Os
Salmos exprimem sentimentos que sempre corresponderão às vibrações dos corações
que possuem a verdade. Jamais passarão.
Píndaro
cantou os heróis e as cidades da Grécia. Horácio celebrou os prazeres e os
deuses dos Romanos. Lê-se-os com curiosidade. Não se canta com eles. Canta-se
sempre com David. A sua lira fará eternamente vibrar as almas para exprimir a
bondade de Deus, a glória de CRISTO, a alegria dos justos e o castigo dos
ímpios.
O
livro de Job não é menos sublime na sua profunda filosofia e nas suas
descrições da natureza. Os seus quadros estão, como dizia Mons. Villemain,
todas frementes de poesias.
Entre
os profetas, Isaías não tem igual. Não será ele, quiçá, o primeiro escritor do
mundo? Bossuet, antes de escrever, relia uma página de Isaías para aí encontrar
o sopro sagrado. Se Racine superou nos seus coros todos os autores líricos, é
porque se aproximou de Isaías imitando-o.
Não
podemos multiplicar mais estes apontamentos.
A
epopeia bíblica, ultrapassa as outras, na medida em que o seu assunto domina os
factos que os poetas profanos cantavam.
O
que é a tomada de Tróia pelos Gregos ou a conquista do Lácio por Eneias, ao
lado do grande drama de CRISTO, conquistando ao seu eterno inimigo, o demónio,
a terra e depois o céu?
[1]
Discurso pronunciado na grande sala de festas do Patronato, 5 de Agosto de
1878, V. “A Semana Religiosa da Diocese de Soissons e Laon”, 5º Ano, 1878, pp.
445-446, Instituição São João, em São Quintino.
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