II
Digamos agora o que devem ser, no nosso
entender, os instrumentos da educação cristã, os mestres que a distribuem, os
livros de que se servem.
O mestre desempenha, frente ao seu
discípulo, a acção de uma verdadeira paternidade espiritual. Ele gera nele
verdadeiramente vida e a semelhança da sua alma. A vida intelectual e moral
derrama-se da alma do educador para a alma do seu aluno por duas fontes: a
palavra e o exemplo. Ele comunica-lhe os seus pensamentos. Revela-lhe o
verdadeiro, tal como a sua inteligência o concebe; o belo, tal como ele o
compreende e o que ele aprendeu a amar; o bem tal como a sua consciência lho
dita.
Apontar tal missão, é por assim dizer a
sua responsabilidade e ao mesmo tempo a sua nobreza. Também entendo que as
famílias cristãs sejam exigentes face àqueles que elas aceitam como segundos
pais para as almas dos seus filhos.
Não basta que eles sejam pessoas
normalmente virtuosas, e a fama de homem honesto não é para eles, um bilhete de
que nos possamos dar por satisfeitos. É preciso que sejam grandes cristãos, de
maneira que a criança sinta de alguma maneira, em toda a sua pessoa, o Mestre
dos mestres, o CRISTO que eles representam e cuja dignidade os reveste.
E se, com tudo o que eu acabo de supor,
o educador católico recebeu do céu uma vocação que não só o convida à prática
do dever mas ao heroísmo da virtude; se ele fez o juramento, não somente da
honestidade, mas da santidade; se ele acrescenta a dignidade que lhe vem da sua
missão a grandeza que recebeu da unção divina e de um carácter sagrado, oh!
então ninguém pode dizer o que produzirá na criança esta acção poderosa e
eleva-se acima da natureza.
Não quer dizer com isso que só o padre
pode dar à infância o benefício da educação cristã. Todo o homem profundamente
cristão, padre ou leigo, religioso ou secular é suficiente, mas um cristão não
pode negar que a entrega especial a JESUS CRISTO, resultante da unção
sacerdotal ou dos votos religiosos, não seja, em geral, na educação uma força e
uma vantagem suplementar.
Este facto tem sido admitido
inclusivamente por educadores laicos imparciais. Eis aqui, por exemplo, alguns
pensamentos expressos por um professor da Faculdade numa obra coroada pela
Academia.[1]
“Há certamente muito a dizer em favor
do ensino ministrado e dirigido por eclesiásticos ou por religiosos. A nossa
preferência pelo ensino laico não nos impede de reconhecer vantagens
consideráveis sobre alguns pontos que o seu carácter assegura aos professores
eclesiásticos. A independência absoluta frente ao mundo, a supressão de todos
os laços que unem cada um de nós à família e à sociedade civil, a renúncia a
todo o interesse terreno, a ruptura com as paixões perturbadoras que desgastam
as energias e devoram o tempo, a solidão e a paz que impedem a dispersão do
pensamento sobre as curiosidades do mundo e as vicissitudes da vida, e que
permitem à reflexão concentrar-se num único objecto; a elevação do pensamento
necessariamente familiar a quem quer que creia trabalhar para a eternidade; o
hábito da disciplina que é mais fácil impor aos outros quando se é o primeiro a
conformar-se com ela; enfim, e acima de tudo, a força moral, a autoridade que
nunca é maior do que no homem que se esquece de si mesmo para falar e actuar em
nome da divindade: eis as condições favoráveis em que estão situados o padre ou
o religioso que se torna professor.”
Não seríamos capazes de referir melhor
as vantagens do ensino eclesiástico.
Outro professor eminente da
Universidade [2] prestava igual justiça à
abnegação, à dedicação, ao zelo profissional dos sacerdotes e dos religiosos na
educação, zelo sem o qual o mestre mais hábil e mais distinto é impotente para
fazer o bem, e apresentava, entre outros motivos, o seguinte: “é difícil
aproximar a juventude sem a amar, e isso é tanto mais possível para os homens
que renunciaram à sua família natural: eles encontram aquilo que perderam.”
Há nisto alguma verdade. É, de facto,
nestas condições que vimos até vós. Independentes face ao mundo, despojados de
qualquer interesse pessoal, seremos tudo para a nossa obra, tudo para os vossos
filhos. Trabalhando para eles, acreditamos que trabalhamos para Deus. Eis o
segredo da nossa dedicação, os segredos do ardor e do zelo que pomos em ajudar
os vossos filhos na sua formação para que correspondam às vossas expectativas e
às de Deus que no-los confia.
Sem insistir mais no ideal do mestre
segundo a nossa perspectiva, falemos do que pensamos sobre os livros, que são
eles também como mestres e instrumentos de educação.
O livro é um dos conselheiros da
criança. Ele segue-a a cada passo. Ensina com o mestre e contra ele. Ele
influencia consideravelmente a sua alma de discípulo.
Voltando aos nossos anos passados, quem
de entre vós não encontra, na sua alma, a marca profunda de algum livro a que
atribui a orientação do seu espírito, determinada ideia predominante na sua
vida.
E para só falar de influências
inocentes, uma criança encontrará no relato impressionante de náufragos
fabulosos nalguma ilha maravilhosa, o gosto pelas aventuras que toma como uma
vocação para enfrentar os perigos do mar. Nós conhecemos estes marinheiros
improvisados, que, graças a este género de leituras, se declaram decididos numa
idade em que ainda não puderam reflectir. Entretanto a ternura inquieta das
suas mães agita-se à volta dos seus projectos ameaçadores. Felizmente a
experiência intervém para impor aos seus desejos prematuros, e estes heróis,
que se contam às centenas no princípio da adolescência, vêem pouco a pouco os
seus planos clarificarem-se. Então as reais aptidões aparecem, as vocações
sérias desenham-se, e a vida melhor ponderada toma a sua verdadeira direcção.
Mas poderão os conselhos da sabedoria,
úteis nestas circunstâncias, ser sempre dirigidos com fruto a espíritos profundamente
marcados por um outro género de leituras? Suponhamos que a razão da criança
seja tomada desde cedo pela falsidade, que as noções da justiça sejam
subvertidas no seu espírito, que as suas paixões sejam despertadas por imagens
suspeitas, e que o seu coração seja desviado por escritos maldosos que
circulam, com a atracção do mistério, por entre os alunos de certas casas, a
sabedoria dos pais e dos mestres não terá somente de lutar contra os erros de
uma imaginação juvenil e desprevenida; o combate será mais sério e a vitória
menos garantida, porque não se trata de discutir esta ou aquela forma acidental
da vida, mas de arrancar a própria vida de uma direcção funesta.
Este perigo pode encontrar-se no
próprio ensino e nas leituras de lazer que acompanham o ensino. No ensino, há o
elemento pagão que deve ser apresentado com prudência.
Os autores profanos ocupam um amplo
espaço nos nossos programas oficiais, um espaço demasiado grande. O Conselho
superior de educação pública, em 1875, tinha feito justiça, se bem que muito
imperfeitamente ainda, aos clássicos cristãos colocando-os no programa do
terceiro ano para o grego, e no segundo ano para o latim, e incluindo-os entre
os autores da licenciatura.
A Igreja quereria o ensino misto destas
duas literaturas, que têm cada uma as suas obras-primas e pertencem a
civilizações diferentes; mas quereria também que o ensino dos autores profanos
fosse rodeado de precauções preventivas muito especiais[3].
Não é o belo o esplendor da verdade,
segundo a definição de Platão? Da mesma maneira que o belo, na ordem natural,
próprio da civilização pagã, se encontra na primeira literatura latina, o mesmo
belo, o sublime, natural e sobrenatural, abunda e resplandece na segunda.
Não é a arte de bem-falar, considerada
na sua origem primitiva, uma maravilhosa emanação do Verbo de Deus, da Palavra
de Deus Pai? Como se poderá então crer que o Verbo encarnado, tenha dignado
dispensar o dom da palavra às nações que não O conhecem, O tenha depois
recusado à Igreja, a sua esposa, conquistada com o preço do seu precioso
sangue?
A Igreja nunca excluiu do ensino os
autores profanos. Com a sua prática tal como com a sua doutrina, ensinou-nos
que eles podem ser auxiliares da verdade, admitindo-os em concorrência com os
autores cristãos.
Não é vantajoso estudar o belo e o
sublime onde quer que eles se encontrem? Devemos ter em consideração homens de
génio, mesmo se não tenham tido a felicidade de professar a verdade completa.
Homero e Virgílio serão sempre objecto de admiração, enquanto a poesia
continuar a ser uma das preocupações do género humano; e enquanto for preciso
ensinar as normas da eloquência, os modelos indicados serão sempre Demóstenes e
Cícero.
Tal tem sido, indiscutivelmente, o
ensino tradicional e constante da Igreja[4].
“Os livros profanos, dizia São Basílio
o Grande, são para os Livros santos o que a folhagem da árvore é para os
frutos: precedem-nos, cobrem também e servem-lhes de adorno”[5]. E
este santo doutor admirava, na literatura profana, não somente a forma
brilhante e a perfeição do estilo, mas ainda a beleza dos exemplos e a elevação
dos pensamentos. Pedia sempre que se fizesse uma escolha de autores, e que se
os lesse como as abelhas actuam nas flores recolhendo delas apenas o mel. Mas
queria, ele também, que fossem auxiliares da verdade e que se fossem estudados
conjuntamente com os autores cristãos.
O seu sentimento faz-se autoridade na
Igreja. “O costume constante na Igreja, lembrava-nos ainda recentemente o nosso
venerado pontífice Pio IX [6], é
ensinar o latim aos jovens pelo estudo misto de autores sagrados e profanos”.
Ninguém põe em dúvida que essa foi a
prática dos primeiros séculos da época dos doutores da Igreja. Na própria Idade
Média, a Igreja, nas escolas monásticas, manteve o uso dos grandes clássicos
pagãos com o dos autores cristãos.
Se Carlos Magno pôde reanimar o culto
da literatura e produzir, com a ajuda de Alcuim, um primeiro renascimento, foi
porque encontrou em Roma, nas escolas pontifícias, tradições, mestres e livros
que só teve de levar para a França, sabe-se que se trata das obras de arte das
literaturas grega e latina conjuntamente com os principais escritos dos Padres
da Igreja.
O nosso grande século clássico, o século XVII, não
procedeu de maneira diferente. Os autores cristãos eram a base do ensino. Os
autores profanos juntavam-se-lhes, como convém, no fim dos estudos.
Fénelon não é suspeito, com certeza, de ignorância ou
de desprezo pelos clássicos, e sabe-se que rumo deu à educação do duque de
Borbonha. Começou por fazê-lo estudar os Livros sapienciais da Sagrada
Escritura, depois alguns livros escolhidos de S. Jerónimo, de Santo Agostinho,
de S. Cipriano, de Santo Ambrósio, algumas poesias de Prudêncio e de S. Paulino
e a História de Sulpício Severo[7]. Só
depois destes primeiros estudos é que o iniciou nas letras pagãs, ensinando-lhe
a colocá-las ao serviço da sabedoria pagã, como exemplifica no seu Télémaque e
nos seus Diálogos dos Mortos.
É assim que se deveria usar a literatura profana, para
que sirva a fé e não a destrua.
Nós estamos hoje longe disso. Os estudantes dos nossos
colégios chegam ao seguinte resultado: conhecem melhor a mitologia do que a
História Sagrada, os factos e as gestas dos deuses do paganismo do que dos
heróis cristãos.
Montalembert fazia notar na introdução ao seu belo
livro sobre os monges do ocidente: “Não saímos todos do colégio, dizia ele,
sabendo de cor os traços pouco edificantes da história de Júpiter, e ignorando
até o nome dos fundadores destas ordens religiosas que civilizaram a Europa e
tantas vezes salvaram a Igreja?”
Nós reagiremos contra este abuso na medida do
possível, tendo em conta os programas que nos impõem os exames.
Quanto às leituras de lazer, estaremos atentos para
que sejam escolhidas com uma delicada prudência, a fim de que não pequem nem
por excesso de seriedade nem de infantilidade. Não gostamos nem dos espíritos
levianos nem dos doutores demasiado precoces. A infância é a primavera da vida.
É mais a idade das flores do que dos frutos. O florescimento e a frescura
são-lhe mais convenientes do que a maturidade. Deus dá frequentemente à criança
a beleza, e a sua ingénua bondade é como um perfume que alegra.
Possamos nós ser, aos olhos das nossas crianças,
dignos instrumentos de CRISTO! Possamos nós responder a tão bela missão e
possuir, com as qualidades do mestre cristão, algo de particularmente elevado,
suave e puro, que não pode deixar de vir-nos da imitação do amável Apóstolo tão
devotado às crianças e a união especial ao Sagrado Coração de JESUS, este
Coração tão amigo das crianças e tão cheio de graças para elas!
[1] G. Comoayré, História
crítica das doutrinas da educação na França.
[2] M. Bersot, Estudos sobre o
sec. XVIII, 1855, pag 224 e seg.
[3] Ver o breve de Pio IX a
Mons. D’Avanzo, de 1 de Abril de 1875.
[4] Ver, sobre o assunto, a
carta do cardeal d’Avanzo de 4 de Novembro de 1874, que é um verdadeiro tratado
sobre a matéria. (Livraria da Sociedade de S. Paulo).
[5] Discurso sobre a utilidade
que os jovens podem tirar da leitura dos autores profanos.
[6] Breve a Mons. D’Avanzo, de
1 de Abril de 1875.
[7] Carta ao abade Fleury,
citado pelos Arquivos das Missões científicas, Agosto de 1850.
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