De poeta e de santo todos temos um tanto, diz o povo e com razão.
Fernando Pessoa não escapa a esta verdade.
O genial poeta tem muito a ver com um santo, a quem chamava simplesmente de O MEU SANTO.
A 13 de junho de 1888, pelas 15H20, nasceu Fernando António Nogueira Pessoa. O parto ocorreu no quarto andar esquerdo do n.º 4 do Largo de São Carlos, em frente ao Teatro Nacional de São Carlos, na então freguesia dos Mártires, em Lisboa. De famílias da pequena aristocracia, pelos lados paterno e materno, o pai, Joaquim de Seabra Pessoa, natural de Lisboa, era funcionário público do Ministério da Justiça e crítico musical do «Diário de Notícias». A mãe, D. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa, era natural dos Açores (mais propriamente, da Ilha Terceira).
Fernando António foi batizado em 21 de julho na Basílica dos Mártires, ao Chiado, tendo por padrinhos a Tia Anica (D. Ana Luísa Pinheiro Nogueira, tia materna) e o General Chaby. A escolha do nome homenageia Santo António: a família reclamava uma ligação genealógica com Fernando de Bulhões, nome de batismo de Santo António, tradicionalmente festejado em Lisboa a 13 de Junho, dia em que Fernando Pessoa nasceu.
Santo António, pagela, autor desconhecido, MA.GRA.281.
Séc. XIX (finais) – Séc. XX (início)
Pertenceu a Fernando Pessoa, tendo sido
integrada na coleção do Museu por doação de Manuela Murteira e Luís Rosa Dias, sobrinhos do poeta.
Fernando Pessoa
SANTO ANTÓNIO
Nasci exatamente no teu dia —
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucólico e humano,
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir...
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!
Santo António, és portanto
O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Católico, apostólico e romano.
(Refleti.
Os cravos de papel creio que são
Mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João...
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)
Adiante ... Ia eu dizendo, Santo António,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demónio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
És o santo do povo.
Tens uma auréola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração —
Está sempre aberto lá o vinho novo.
Dizem que foste um pregador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,
Etcetera...
Mas qual de nós vai tomar isso à letra?
Que de hoje em diante quem o diz se digne
Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa.
Qual santo! Olham a árvore a olho nu
E não a veem, de olhar só os ramos.
Chama-se a isto ser doutor
Ou investigador.
Qual Santo António! Tu és tu.
Tu és tu como nós te figuramos.
Valem mais que os sermões que deveras pregaste
As bilhas que talvez não concertaste.
Mais que a tua longínqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
No que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as semelhanças
Com quando a vida era só vida e instinto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.
Nós somos todos quem nos faz a história.
Nós somos todos quem nos quer o povo.
O verdadeiro título de glória,
Que nada em nossa vida dá ou traz
É haver sido tais quando aqui andámos,
Bons, justos, naturais em singeleza,
Que os descendentes dos que nós amámos
Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que há na certeza,
O amante a quem ama,
E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez contigo
Nunca foi teu devoto: é teu amigo,
Ó eterno rapaz.
(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm beleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa? ...
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico
Em fantasia, promoveu-te a manjerico.
És o que és para nós. O que tu foste
Em tua vida real, por mal ou bem,
Que coisas, ou não coisas se te devem
Com isso a estéril multidão arraste
Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,
Essa prolixa nulidade, a que se chama história,
Que foste tu, ou foi alguém,
Só Deus o sabe, e mais ninguém.
És, pois, quem nós queremos, és tal qual
O teu retrato, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até que já te vi.
És este, e este és tu, e o povo é teu —
O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vai alta a lua
Num plácido e legítimo recorte,
Atira risos naturais à morte,
E cheio de um prazer que mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.
Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei António —
Isso sim.
Porque demónio
É que foram pregar contigo em santo?
(Cf. Fernando Pessoa: Santo António, São João, São Pedro.
Fernando Pessoa. Organização de Alfredo Margarido. Lisboa: A Regra do Jogo,
1986)
Santo António de Lisboa
Era um grande pregador,
Mas é por ser Santo António
Que as moças lhe têm amor.
(s.d. Cf. Quadras ao Gosto Popular. Fernando Pessoa.
(Texto estabelecido e prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado
Coelho.) Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973).
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