quarta-feira, 12 de junho de 2024

O santo de Fernando Pessoa


De poeta e de santo todos temos um tanto, diz o povo e com razão.

Fernando Pessoa não escapa a esta verdade.

O genial poeta tem muito a ver com um santo, a quem chamava simplesmente de O MEU SANTO.


A 13 de junho de 1888, pelas 15H20, nasceu Fernando António Nogueira Pessoa. O parto ocorreu no quarto andar esquerdo do n.º 4 do Largo de São Carlos, em frente ao Teatro Nacional de São Carlos, na então freguesia dos Mártires, em Lisboa. De famílias da pequena aristocracia, pelos lados paterno e materno, o pai, Joaquim de Seabra Pessoa, natural de Lisboa, era funcionário público do Ministério da Justiça e crítico musical do «Diário de Notícias». A mãe, D. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa, era natural dos Açores (mais propriamente, da Ilha Terceira).

Fernando António foi batizado em 21 de julho na Basílica dos Mártires, ao Chiado, tendo por padrinhos a Tia Anica (D. Ana Luísa Pinheiro Nogueira, tia materna) e o General Chaby. A escolha do nome homenageia Santo António: a família reclamava uma ligação genealógica com Fernando de Bulhões, nome de batismo de Santo António, tradicionalmente festejado em Lisboa a 13 de Junho, dia em que Fernando Pessoa nasceu.

Santo António, pagela, autor desconhecido, MA.GRA.281. 

Séc. XIX (finais) – Séc. XX (início)
Pertenceu a Fernando Pessoa, tendo sido integrada na coleção do Museu por doação de Manuela Murteira e Luís Rosa Dias, sobrinhos do poeta.


Fernando Pessoa

SANTO ANTÓNIO

 

Nasci exatamente no teu dia —

Treze de Junho, quente de alegria,

Citadino, bucólico e humano,

Onde até esses cravos de papel

Que têm uma bandeira em pé quebrado

Sabem rir...

Santo dia profano

Cuja luz sabe a mel

Sobre o chão de bom vinho derramado!

 

Santo António, és portanto

O meu santo,

Se bem que nunca me pegasses

Teu franciscano sentir,

Católico, apostólico e romano.

 

(Refleti.

Os cravos de papel creio que são

Mais propriamente, aqui,

Do dia de S. João...

Mas não vou escangalhar o que escrevi.

Que tem um poeta com a precisão?)

 

Adiante ... Ia eu dizendo, Santo António,

Que tu és o meu santo sem o ser.

Por isso o és a valer,

Que é essa a santidade boa,

A que fugiu deveras ao demónio.

És o santo das raparigas,

És o santo de Lisboa,

És o santo do povo.

Tens uma auréola de cantigas,

E então

Quanto ao teu coração —

Está sempre aberto lá o vinho novo.

 

Dizem que foste um pregador insigne,

Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,

Etcetera...

Mas qual de nós vai tomar isso à letra?

Que de hoje em diante quem o diz se digne

Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa.

 

Qual santo! Olham a árvore a olho nu

E não a veem, de olhar só os ramos.

Chama-se a isto ser doutor

Ou investigador.

 

Qual Santo António! Tu és tu.

Tu és tu como nós te figuramos.

 

Valem mais que os sermões que deveras pregaste

As bilhas que talvez não concertaste.

Mais que a tua longínqua santidade

Que até já o Diabo perdoou,

Mais que o que houvesse, se houve, de verdade

No que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,

Vale este sol das gerações antigas

Que acorda em nós ainda as semelhanças

Com quando a vida era só vida e instinto,

As cantigas,

Os rapazes e as raparigas,

As danças

E o vinho tinto.

 

Nós somos todos quem nos faz a história.

Nós somos todos quem nos quer o povo.

O verdadeiro título de glória,

Que nada em nossa vida dá ou traz

É haver sido tais quando aqui andámos,

Bons, justos, naturais em singeleza,

Que os descendentes dos que nós amámos

Nos promovem a outros, como faz

Com a imaginação que há na certeza,

O amante a quem ama,

E o faz um velho amante sempre novo.

Assim o povo fez contigo

Nunca foi teu devoto: é teu amigo,

Ó eterno rapaz.

 

(Qual santo nem santeza!

Deita-te noutra cama!)

Santos, bem santos, nunca têm beleza.

Deus fez de ti um santo ou foi o Papa? ...

Tira lá essa capa!

Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico

Em fantasia, promoveu-te a manjerico.

 

És o que és para nós. O que tu foste

Em tua vida real, por mal ou bem,

Que coisas, ou não coisas se te devem

Com isso a estéril multidão arraste

Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,

Essa prolixa nulidade, a que se chama história,

Que foste tu, ou foi alguém,

Só Deus o sabe, e mais ninguém.

 

És, pois, quem nós queremos, és tal qual

O teu retrato, como está aqui,

Neste bilhete postal.

E parece-me até que já te vi.

 

És este, e este és tu, e o povo é teu —

O povo que não sabe onde é o céu,

E nesta hora em que vai alta a lua

Num plácido e legítimo recorte,

Atira risos naturais à morte,

E cheio de um prazer que mal é seu,

Em canteiros que andam enche a rua.

 

Sê sempre assim, nosso pagão encanto,

Sê sempre assim!

Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,

Esquece a doutrina e os sermões.

De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.

Foste Fernando de Bulhões,

Foste Frei António —

Isso sim.

Porque demónio

É que foram pregar contigo em santo?

 

(Cf. Fernando Pessoa: Santo António, São João, São Pedro. Fernando Pessoa. Organização de Alfredo Margarido. Lisboa: A Regra do Jogo, 1986)

 

Santo António de Lisboa

Era um grande pregador,

Mas é por ser Santo António

Que as moças lhe têm amor.

 

(s.d. Cf. Quadras ao Gosto Popular. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido e prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973).  - 116)

 

Ver também:

O santo que perdeu o menino

Pátrias de Santo António

O santo da nossa festa

De Lisboa ou de Pádua

O milagre que falta

Utilidade pública

A língua de santo António

Santo António

António Santo

 

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