Assinalamos hoje os 100 anos do nascimento da nossa mãe Maria José Quintal.
Digo
‘nossa mãe’ e não apenas minha mãe por duas razões:
1º
porque eu tenho 7 irmãos.
2º
porque quem tem um filho padre, torna-se também mãe de todos os que o sacerdote
é chamado a servir como irmão.
Aqui
vão algumas pequenas lições avulso que encontrei entre os papéis da minha gaveta.
O
objetivo não é apenas destacar a figura dessa grande mulher, que nasceu há cem anos, mas também
incentivar os leitores a trazer à memória tantas lições parecidas que receberam da sua
mãe e mestra.
1-
A primeira lição
As
melhores lições sobre Deus não as recebi ao estudar teologia, nem ao ouvir
pregações, nem ao ler tantos livros, mas foram-me dadas quando eu não sabia ler
e por gente tão simples que mal conseguia assinar o seu nome. Essas lições
ocorreram na minha casa paterna, quando eu era criança.
Quando,
à noite, se rezava o terço, nós crianças estávamos a ser evangelizados.
Eu
olhava para o meu pai e pensava: Deus deve ser Alguém muito importante, porque
o meu pai tira o chapéu para falar com ele.
A minha mãe continuava a remendar as meias e eu pensava: Deus deve ser Alguém muito simples, pois a minha mãe não se importa de remendar enquanto reza a Deus.
O
meu irmão mais velho, por vezes, dormitava e eu pensava: Deus deve ser Alguém
muito compreensivo que tolera que o meu irmão durma durante as orações.
Os meus irmãos mais novos brincavam e eu pensava: Deus deve ser Alguém tão amoroso que aceita as brincadeiras infantis. Ou será isso também uma maneira de rezar, pois cada um faz oração da maneira como vive.
Foi
assim que recebi as primeiras lições lá em casa, sem livros nem discursos, mas
vendo apenas gente simples a rezar.
Ainda
hoje, qualquer família continua a ser a melhor escola de vida. Mesmo sem saber,
ela continua a ensinar. E as crianças, sem grandes aspirações, continuam hoje a
aprender que Deus é Alguém importante, simples, compreensivo e amoroso.
2
- Aprendendo a rezar
Aprendi a rezar a ave-maria enquanto a mãe fazia o almoço.
Eu
tinha dificuldade em rezar/decorar a primeira parte da ave-maria…
Talvez
porque quando se rezava o terço em família a minha irmã mais velha dirigia a
recitação e era sempre ela a iniciar a primeira parte da ave-maria e todos
respondiam com a segunda parte.
Mas
talvez esta dificuldade em saber a segunda parte, foi prenúncio para nunca me esquecer de me identificaria com o que aí se rezava – rogai por nós
pecadores… Assim nunca devia esquecer ao longo da vida essa condição de pecador e a sua dificuldade... um pecador é um santo adiado, e um santo é um pecador arrependido.
Enquanto a mãe preparava a mistura para deitar na panela, eu ia repetindo ave-marias até estar tudo bem cozinhado e apurado. Quem não reza não apura nada.
Lembro
o cheiro que vinha da panela que me fazia crescer água na boca. E eu até
pensava que rezar fazia crescer água na boca. Isso é uma grande verdade.
3
- Rezar com a boca e com o coração
Aprendi outra lição do terço. A mãe obrigava-nos a rezar baixinho a primeira parte da
ave-maria (rezada por voz forte por quem dirigia o terço). Ela queria ver os
nossos lábios a mexer porque senão dizia que no final só teríamos rezado meio
terço.
E eu
pensava – a mãe quer ver nos nossos lábios se estamos a rezar, mas Deus
não precisa de olhar para a nossa boca, aliás como consegue olhar para todos ao mesmo tempo?!… Deus só olha para o nosso coração.
4
- Rezar por todos
No final
do terço a minha mãe continuava a reza por várias intenções, de modo que nós
dizíamos que o que rezávamos no fim do terço valia mais ou era mais cumprido do que
o próprio terço: um pai-nosso e uma ave-maria pela avó falecida, outro pela paz
do mundo, outro pela conversão dos pecadores, outro pela tia que está doente,
outro pelas intenções do Santo Padre e por fim um pai-nosso e uma ave-maria
pelos sacerdotes.
E
nós protestávamos - ó mãe, os sacerdotes é que rezam por nós, e não nós por
eles… Pela sua santificação? Eles são mais santos que nós… não precisamos de
rezar por eles.
Só
mais parte é que percebi a necessidade de rezar por essa intenção, tanto mais,
agora que sou sacerdote bem preciso que rezem por mim. E não fazem mais do
que a vossa obrigação, porque eu também rezei pelos padres enquanto não era
padre.
Também
ficava a apensar porque se rezava pelas intenções do Santo Padre. É porque essas intenções poderiam não ser boas? O Papa teria
então alguma má intenção? Além disso, ao rezar pelas intenções do Santo Padre,
estávamos a rezar por nós mesmos, pois a mãe dizia que o Santo Padre
rezava por todos nós, tal como um pároco deve rezar por todos os
seus paroquianos.
5
- Rezar a Santa Bárbara, mas pensar na mãe
Quando
há trovões toda a gente pensa e reza a Santa Bárbara.
Nós
dizíamos que quando havia trovões, todos os filhos pensavam na nossa mãe, porque
ela tinha medo de trovões… Ela achava piada nisso e dizia que quando ouvia
trovões ficava sossegada e confiante, pois sabia que todos os seus filhos
estavam a pensar nela.
6
- Aprendendo a remediar
- O
que remedeia, serve – costumava dizer no meio de arranjos e remendos.
- A
mãe diga o resto porque a frase está incompleta.
- Não
está nada. É assim mesmo. Se dá para remediar, servido está.
- Ó
mãe, a frase deve ser assim: o que remedeia serve, serve só para remediar e não para
ficar definitivo…
- Por
agora serve – concluía.
7
- Rezar a dormir ou dormir a rezar
- Quando rezo o terço na cama, começo logo a
dormir… é pecado? Eu já rezei outros terços antes, mas na cama ao me deitar,
nunca chego ao fim…
- Ó mãe, isso não deve ser pecado, antes pelo
contrário é uma graça ou grande felicidade adormecer com essas palavras divinas
na boca… A mãe não dorme enquanto reza, a mãe reza enquanto dorme, que coisa
mais linda!
8 - Rezar por alguém ou em vez de alguém
- Ó filho, hoje não te vi na missa da paróquia,
foste a outra igreja?
- Não mãe, telefonei ao meu irmão e pedi que ele
rezasse por mim. Ele prometeu e então eu não preciso de ir rezar porque ele
hoje reza por mim, não fosse ele padre a rezar duas ou três missas ao domingo.
- Isso não vale. Onde está o teu juízo? Ele reza
por ti, não em teu lugar… Quem te ouvir dizer isso vai perguntar quem te
ensinou essas coisas. Até podem pensar que fui eu que te eduquei assim. Que
vergonha.
- Isso é uma brincadeira, mãe… Eu, a minha mulher e filho,
vamos todos à missa logo à tarde à Sé. A mãe quer vir connosco?
9
- Rezar pelos falecidos
Quando
morria algum vizinho, amigo ou conhecido, a mãe telefonava para nós, para
dar a informação. E terminava dizendo:
-
Olha que ele(a) foi ao funeral do teu pai…
E
nós já sabíamos o que ela queria dizer.
Ir
ao funeral dessa pessoa como agradecimento por ter ido ao funeral do nosso pai,
ou ir ao funeral no lugar do nosso pai, porque se ele estivesse por cá iria com
certeza.
10
- Filhos bem tratados
Num
dos jantares de família, concluímos que todos os filhos estavam bem tratados,
pois ninguém estava magro, antes pelo contrário…
Então
começámos a dizer que quando éramos pequenos, quando comíamos toda a sopa, a
mãe dizia: que lindo menino, comeu a sopa toda.
E
nós para ouvirmos esse elogio da nossa mãe comíamos mais do que
devíamos.
Ela então dizia para as noras: se vocês não me conhecessem pensariam que era verdade o que eles estão a dizer, que
só dizia que eram lindos nessa ocasião. Ainda bem que vocês me conhecem…
11
- Desperdiçar é pecado
Quando
éramos crianças e desperdiçávamos algum pedaço de pão ou deitávamos fora algum
alimento, a mãe sempre dizia:
-
Isso é um pecado. Há tanta gente a passar fome e vocês a estragar assim a
comida. É um pecado contra Deus que fez a comida para todos e uma falta de
respeito para com os pobres que passam fome.
Hoje
como padre não sei se este pecado consta ou não na lista da confissão. Aliás,
nem posso dizer nada sobre isso, por obrigação de sigilo sacramental.
Em
todo o caso, acho que a minha mãe tinha razão. Deus não deve gostar de ver
alguém a desperdiçar seja o que for. E se Deus não gosta, então isso é pecado.
12
- Ensinando a justiça e equidade
Quando
a mãe nos dava uma peça de fruta ou um brindeiro ou um bolo para dividir por
dois irmãos sempre recomendava, para evitar brigas ou abusos:
- Um
parte e o outro é o primeiro a tirar uma fatia.
Assim
a divisão era justíssima até ao ínfimo e não havia mais discussões e ninguém
precisava de escolher, pois os pedaços eram perfeitamente iguais.
13
- Ensinando a pedir desculpas
Quando
alguém, de propósito ou não, era agressivo ou violento com o seu irmão, a mãe
mandava imediatamente pedir desculpar em voz alta para todos ouvirem. Isso era
normal em todas as famílias.
Mas
na nossa casa a mãe mandava-nos pedir desculpa às portas, às cadeiras, ao prato
e a tudo o que nós tratássemos com agressividade.
Por
exemplo, se alguém insatisfeito ou num momento de revolta fechava a porta com mais
força, logo a mãe dizia:
-
Pede já desculpa à porta, que ela não culpa de seres mal-educado.
E lá
tínhamos de pedir desculpa à porta em voz alta abrindo e fechando com cuidado,
mostrando assim que sabíamos ser respeitadores.
Havia
um irmão que fazia isso acarinhando o objeto mal tratado e se fosse uma toalha
ou uma peça de roupa, tinha a criatividade de torcer ou imitar um beliscão
vingativo enquanto pedia desculpa com voz doce. Claro que os outros riam-se da
cena e a mãe repreendia-nos pensando que estávamos a rir do pedido de desculpa:
- Se
não pararem de rir vão também pedir desculpa como ele.
14
– Ensinando a solidariedade:
Quando
alguém estava doente e precisava de tomar um xarope, toda a gente, nesse dia,
tomava o mesmo xarope.
Quando
alguém, na véspera tinha de estudar porque no dia seguinte tinha um teste,
todos os irmãos, estudavam como se tivessem também um teste.
Quando
a mãe tinha frio, os filhos tinham de vestir um casaco.
Era
uma espécie de um por todos, todos por um.
15
– Ensinando a partilhar
Quando
alguém não tinha muita vontade em colaborar ou ajudar a fazer qualquer coisa
com os demais, a mãe punha-se a declamar a cantilena, apontando os dedos da
mão:
- Este
foi à serra, este achou um perinho, este descascou, este comeu e este disse que
era bonzinho.
E
enquanto havia alguém que não alinhava na interajuda ela repetia até ver o
resultado positivo. Assim éramos levados a colaborar uns com os outros.
16
– Aprendendo a festejar
Quando um filho fazia anos, era ele quem telefonava para dar os parabéns à mãe e não ela ao filho.
– Ó filho,
o aniversário é teu. Por que é que dás os parabéns à mãe?
- Já
se esqueceu que no dia em que nasci quem recebeu todos os parabéns foi a mãe?
Hoje é dia de lembrar os parabéns que recebeu nessa ocasião.
-
Tens razão, filho. Então parabéns também para o teu pai!
De
facto, os aniversários têm tanto a ver com os pais quanto com os filhos.
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