O Fado de Amália
Amália Rodrigues morreu na véspera da Festa de Nossa Senhora do Rosário. Esta coincidência traz-me ao pensamento uma pequena lição de Amália, registada nos arquivos do Diário de Notícias de Maio de 1954. Já nessa altura a fadista cantava com o seu jeito bem característico, a cabeça deitada para trás, os olhos cerrados, os dedos das mãos enlaçando-se e desenlaçando-se nervosamente… e todos ficavam suspensos da espantosa voz e da magnífica interpretação.
Um dos seus fados, “Há festa na Mouraria”, com versos de Gabriel Oliveira e música de Alfredo Marceneiro, evoca o humilde fervor religioso da procissão anual da Senhora da Saúde, desfilando através das ruas da velha Mouraria. Certa vez ao cantá-lo, passou-se qualquer coisa de extraordinário na interpretação de Amália. Ao cantar a sextilha:
“Após um breve rumor
Um fundo silêncio pesa
Por sobre o largo da Guia…
Passa a Virgem no andor…
Tudo se ajoelha e reza
Até a Rosa Maria…”
a artista detivera-se longamente após a palavra “Virgem. Não era esse o ritmo da música, nem a letra, pela sua contexto ou pela sua pontuação, recomendava a paragem. E no entanto foi precisamente nesse profundo silêncio, nesse apagar-se súbito da voz que se sentiu o mais alto momento da beleza da interpretação.
Quando, passados minutos, perguntaram a Amália, o que a levara a fazer aquela pausa, ela olhou interlocutor sorrindo, uma luzinha de espanto nos seus olhos escuros, e respondeu simplesmente, com admiração de que o seu amigo não tivesse encontrado sozinho a explicação:
- Mas, meu Deus… quando a Virgem passa, tudo o mais desaparece.
Só a voz, o sentir e a simplicidade de uma cantora como Amália é capaz de despertar esta emoção espiritual.
Que a Virgem Maternal, despida de ostentações, emocionante e piedosa, retratada pelo fado de Amália, seja bálsamo de consolação e de paz para a sua alma.
David Quintal, 09/10/1999
Amália Rodrigues morreu na véspera da Festa de Nossa Senhora do Rosário. Esta coincidência traz-me ao pensamento uma pequena lição de Amália, registada nos arquivos do Diário de Notícias de Maio de 1954. Já nessa altura a fadista cantava com o seu jeito bem característico, a cabeça deitada para trás, os olhos cerrados, os dedos das mãos enlaçando-se e desenlaçando-se nervosamente… e todos ficavam suspensos da espantosa voz e da magnífica interpretação.
Um dos seus fados, “Há festa na Mouraria”, com versos de Gabriel Oliveira e música de Alfredo Marceneiro, evoca o humilde fervor religioso da procissão anual da Senhora da Saúde, desfilando através das ruas da velha Mouraria. Certa vez ao cantá-lo, passou-se qualquer coisa de extraordinário na interpretação de Amália. Ao cantar a sextilha:
“Após um breve rumor
Um fundo silêncio pesa
Por sobre o largo da Guia…
Passa a Virgem no andor…
Tudo se ajoelha e reza
Até a Rosa Maria…”
a artista detivera-se longamente após a palavra “Virgem. Não era esse o ritmo da música, nem a letra, pela sua contexto ou pela sua pontuação, recomendava a paragem. E no entanto foi precisamente nesse profundo silêncio, nesse apagar-se súbito da voz que se sentiu o mais alto momento da beleza da interpretação.
Quando, passados minutos, perguntaram a Amália, o que a levara a fazer aquela pausa, ela olhou interlocutor sorrindo, uma luzinha de espanto nos seus olhos escuros, e respondeu simplesmente, com admiração de que o seu amigo não tivesse encontrado sozinho a explicação:
- Mas, meu Deus… quando a Virgem passa, tudo o mais desaparece.
Só a voz, o sentir e a simplicidade de uma cantora como Amália é capaz de despertar esta emoção espiritual.
Que a Virgem Maternal, despida de ostentações, emocionante e piedosa, retratada pelo fado de Amália, seja bálsamo de consolação e de paz para a sua alma.
David Quintal, 09/10/1999
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