O verdadeiro retrato de santo Inácio de Loiola
Enfermo Inácio e já nos últimos
dias da vida, veio visitá-lo seu grande devoto o eminentíssimo Cardeal Pacheco;
e trouxe consigo um pintor insigne, o qual de parte donde visse o santo, e não
fosse visto dele, a furto de sua humildade o retratasse.
Põe-se encoberto o pintor, olha
para Santo Inácio, forma ideia, aplica os pincéis ao quadro, e começa a
delinear-lhe as feições do rosto. Torna a olhar (cousa maravilhosa) o que agora
viu já não era o mesmo homem, já não era o mesmo rosto, já não era a mesma
figura, senão outra muito diferente da primeira. Admirado o pintor, deixa o
desenho que tinha começado, lança segundas linhas, começa segundo retrato e
segundo rosto. Olha terceira vez (nova maravilha) o segundo original já tinha
desaparecido, e Inácio estava outra vez transformado com novo aspeto, com novas
feições, com nova cor, com nova proporção, com nova figura. Já o pintor se
pudera desenganar e cansar, mas sendo o objeto o mesmo, nunca pode tornar a ver
o mesmo que tinha visto, porque quantas vezes aplicava e divertia os olhos
tantos eram os rostos diversos e tantas a figuras novas em que o santo se lhe
apresentava. Pasmou o pintor, e desistiu do retrato, pasmaram todos, vendo a
variedade dos desenhos que tinha começado…
Santo Inácio nunca teve dois
rostos, quanto mais tantos. Foi cortesão, foi soldado, foi religioso, e nunca
mudou de cores, nem de semblante. Serviu em palácio a el Dei D. Fernando, o
Católico, e a sua gala maior era trajar sempre da mesma cor, e trazer o coração
no rosto. Os amigos viam-lhe no rosto o amor; os inimigos a desafeição. O
príncipe a verdade, e ninguém lisonja. Quando soldado nunca entre as balas
mudou as cores. Na comédia e na batalha estava com o mesmo desenfado.
Ninguém pode retratar a Santo Inácio. Mas só Santo Inácio se retratou a
si mesmo. E qual é o verdadeiro retrato? Qual é a vera-efígie de Santo
Inácio? A vera-efígie de santo Inácio é aquele livro de seu Instituto que tem
nas mãos. O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve. O corpo retrata-se com o pincel, a alma com
a pena.
A primeira imagem de Deus é o seu
Verbo gerado; a segunda o Verbo escrito. O Verbo gerado é retrato de Deus ad
intra. O Verbo escrito é retrato de Deus ad extra.
Santo Inácio nasceu fidalgo, foi
cortesão, foi soldado, foi mendigo, foi peregrino, foi perseguido, foi preso,
foi estudante, foi graduado, foi escrito, foi religioso, foi pregador, foi
súbito, e até pecador foi em sua mocidade, depois arrependido, penitente e
santo. Para quê? Para que todos achem tudo em santo Inácio, O fidalgo achará em
Santo Inácio um ideia de verdadeira nobreza, o cortesão os primores da
verdadeira polícia; o soldado os timbres do verdadeiro valor, o pobre achará em
Santo Inácio que o não desejar é a maior riqueza; o peregrino que todo o mundo
é pátria; o perseguido que a perseguição é o carácter dos escolhidos; o preso
que a verdadeira liberdade é a inocência; o estudante achará em Santo Inácio o
cuidado sem negligência, o letrado a ciência sem ambição, o pregador a verdade
sem respeito, o escritor, a utilidade sem afeite. O religioso achará em Santo
Inácio a perfeição mais alta, o súbito a obediência mais cega, o prelado a
prudência mais advertida, o legislador as leis mais justas. O mestre de
espírito achará em Santo Inácio muito que aprender, muito que exercitar, muito
que ensinar, e muito para onde crescer. Finalmente o pecador (por mais metido
que se veja no mundo e nos enganos de suas vaidades) achará em Santo Inácio o
verdadeiro norte de sua salvação, achará o exemplo mais raro da conversão de
vida, achará o espelho ais vivo da resoluta e constante penitência: e achará o
motivo mais eficaz da confiança em Deus, e na sua misericórdia para pretender,
para conseguir, para perseverar, e para subir e chegar ao mais alto cume da
santidade e graça com a qual se mede a Glória.
(Pe. António Vieira, Sermão de Santo Inácio, Col de
Sto Antão, Lx 1669)
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