Memória do Beato Frei Bartolomeu dos Mártires
A
lenda que vou contar tem como cenário a bela cidade de Viana de Castelo, e
está ligada à história maravilhosa de D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Na
sua velhice, Frei Bartolomeu resolvera recolher-se ao mosteiro de S. Domingos,
em Viana, mosteiro que ele fundara à custa de um esforço sem limites e de uma
vontade de antes quebrar que torcer. Sentindo-se cansado, já perto da morte,
Frei Bartolomeu dos Mártires preferiu aos tumultos do mundo o sossego e a
simplicidade da sua cela. E é nesse sossego que nasce a lenda que vou
contar.
Na
sua cela, Frei Bartolomeu não se cansava de implorar ao Senhor:
—
Ó meu Deus! Se não valeis depressa a este mundo desvairado, os homens
perdem-se, os homens enlouquecem! A guerra, para eles, acabou por se tornar um
hábito. Acabai com esse flagelo, Deus meu! Chamai-os à razão! Mostrai-lhes mais
uma vez o caminho da Verdade! Eles hão-de acabar por compreender.
Mas
os homens afastavam-se cada vez mais desse caminho. As lutas entre irmãos do
mesmo sangue, erguidas pela ambição do poderio, tornavam-se mais frequentes e
mais sinistras.
Ora
aconteceu que nas imediações do convento, a caminho do rio, um pescador vindo
de longe veio estabelecer ali a sua companha. Esse pescador era viúvo e tinha
apenas uma filha.
Numa das suas visitas habituais ao bairro dos pescadores — levando-lhes o conforto espiritual e todo o auxilio que podia arrancar às suas modestas posses — Frei Bartolomeu dos Mártires entrou, também, na casa desse velho pescador. Com o sorriso nos lábios, saudou-o:
Numa das suas visitas habituais ao bairro dos pescadores — levando-lhes o conforto espiritual e todo o auxilio que podia arrancar às suas modestas posses — Frei Bartolomeu dos Mártires entrou, também, na casa desse velho pescador. Com o sorriso nos lábios, saudou-o:
—
Deus vos abençoe, bom homem! Posso entrar?
O
pescador olhou o frade com dureza.
—
Para que pede licença, se entra antes de ouvir a resposta? Na minha terra
bate-se primeiro à porta!
Frei
Bartolomeu não se amofinou. Sorriu com doçura e humildade.
—
Desculpai... mas aqui os costumes são outros... E ninguém faz cerimónia com um
pobre frade como eu.
Parou
no meio da casa e perguntou:
—
Dais licença que me sente? Estou velho e as minhas pernas estão gastas... Já não
aguento muito tempo de pé...
O
pescador não respondeu logo. Olhou o frade com atenção. Depois gritou para um
outro aposento:
—
Eh, rapariga! Traz uma cadeira para este frade. Ele quer sentar-se.
Uma
rapariga bastante jovem e de aspecto decidido apareceu. A sua voz era
agreste.
—
Está aqui um banco. É o que se pode arranjar. Isto não é casa de ricos.
Sem
se perturbar, Frei Bartolomeu respondeu com o mesmo sorriso complacente:
—
Eu sei... eu sei... Por isso vim até aqui...
Ela
franziu as sobrancelhas:
—
E porquê, aqui?
—
Porque os ricos não precisam das minhas visitas.
Rude,
o homem replicou:
—
Nem nós, apesar de sermos pobres. Basta-nos o nosso trabalho.
A
jovem apoiou a opinião do pescador:
—
Tem razão, meu pai! Não é com palavras que a gente se governa. E com isto me
vou.
Tenho
a roupa à minha espera. E tem que ficar ainda hoje enxuta.
Uma
sombra de tristeza anuviou a expressão de Frei Bartolomeu, que se apressou a
dizer.
—
Esperai, não vos ides embora. Gostava tanto de conversar com os dois!
Sempre
ríspida, a rapariga retorquiu:
—
Mas nós é que não temos tempo para conversas. E para mais, conversas que não
nos interessam...
—
Que sabeis disso?
—
Ora! Sei que o trabalho não pode esperar!
Frei
Bartolomeu voltou a sorrir.
—
Se Deus quiser... ficai sabendo que o vosso trabalho se despachará a tempo e
horas.
Ela
soltou uma gargalhada que soou falsa.
—
Era o que faltava agora! Deus vir ajudar-me a lavar e a enxugar a roupa!
E
num trejeito de desafio:
—
Eu já não vou nessas patranhas, senhor padre!...
O
pescador achou por bem intervir para pôr cobro à conversa.
—
Olhe, se vem cá com a mania de nos levar à igreja, engana-se redondamente. Isso
acabou para nós há muito tempo!
Assombrou-se
o rosto do pescador. Ficou mais fechada a expressão da rapariga. O frade ficou
alerta. E quis saber:
—
Disseste... que isso já acabou?
A
jovem, menos ríspida, esclareceu:
—
Sim, há muito tempo... quando a minha mãe morreu.
Houve
um pequeno silêncio que o santo frade respeitou. Depois, numa voz cariciosa,
retomou a palavra:
—
Compreendo a vossa dor. Não há nada na Terra que possa substituir o amor de um
ente querido, principalmente o amor de mãe! Mas... dizei-me: como foi que ela
morreu?
O
pescador voltou a mostrar-se desabrido.
—
Como foi? Pergunte ao seu Deus! Ele é que lhe pode responder. Ele é que a
matou!
Frei
Bartolomeu abriu os olhos. Ia responder à afronta. Mas já a rapariga, chorando,
exclamava:
—
E tanto que ela acreditava n’Ele, tanto! Não se deitava nem se levantava sem
lhe rezar as suas orações. E afinal... afinal… para quê?
O
frade lembrou, na sua voz serena:
—
Deus sabe o que faz, meus filhos. Se a chamou para seu lado, foi porque ela o
merecia.
Num
eco, o pescador começou desfiando o seu rosário de recordações.
—
Nunca mais esquecerei essa noite! Fizemos tudo o que era possível para a
salvar.
Rezámos...
rezámos... sei lá quantas vezes... Pedimos a Deus... pedimos a todos os
santos... Fiz promessas... Mas nada! Ela morreu!
E
numa súbita revolta:
—
Ouviu bem, seu coruja? Ela morreu, apesar disso tudo! Desde aí nunca mais quis
ouvir falar em Deus! Só conto com os meus braços, o meu trabalho e a minha
filha!
A
rapariga pareceu afligir-se.
—
Pai! Não esteja a falar com tanta exaltação! Isso faz-lhe mal!
E
voltando-se para Frei Bartolomeu:
—
O senhor quer mais alguma coisa de nós? Se não quer... vá-se embora! Já ouviu o
bastante. Nesta casa não há lugar para Deus!
O
bom do frade empalideceu, mas continuou aparentemente calmo. Levantou-se e
disse, sereno:
—
Vou-me embora, sim. Não os quero afligir mais com a minha presença. Mas pedirei
a
Deus
que vos ajude... que vos encaminhe...
E
sem esperar resposta, Frei Bartolomeu saiu da casa do pescador.
Algum
tempo passou. Frei Bartolomeu não esquecia o pobre marítimo e a sua filha, tão
atormentados pela perda de um ente querido. Orava por eles dia e noite. Fizera
mesmo várias tentativas para voltar a visitá-los mas dessas vezes nem
consentiram na sua entrada. Recusaram mesmo receber qualquer esmola, num assomo
de orgulho desmedido. E bateram-lhe com a porta na cara!
Desde
esse momento, Frei Bartolomeu dos Mártires não mais procurou a casa do pescador
revoltado. Mas continuava pedindo a Deus por ele e pela filha, nas suas orações
diárias.
Certo
dia de Inverno rigoroso, o pescador fez-se ao rio com mais quatro companheiros.
Sem quase darem por isso, o barco, levado por medonho temporal, começou a
afastar-se e a entrar no oceano. O mar estava tenebroso e em terra todos temiam
pela sorte dos cinco homens.
Quando a filha do pescador se deu conta do perigo, correu de porta em porta a suplicar que fossem acudir ao pai. Mas ninguém se atrevia, com um temporal assim, a afrontar o oceano. Então, como último recurso, ela subiu as escadas do convento de S. Domingos. Bateu à porta. Quando a entrada do convento lhe foi franqueada, ela pediu, com voz repassada de amargura e de cansaço:
Quando a filha do pescador se deu conta do perigo, correu de porta em porta a suplicar que fossem acudir ao pai. Mas ninguém se atrevia, com um temporal assim, a afrontar o oceano. Então, como último recurso, ela subiu as escadas do convento de S. Domingos. Bateu à porta. Quando a entrada do convento lhe foi franqueada, ela pediu, com voz repassada de amargura e de cansaço:
—
Preciso falar com aquele frade velhinho… aquele frade que costuma visitar os
pescadores...
Levaram-na
a presença de Frei Bartolomeu dos Mártires. Quando o avistou correu para ele,
olhos rasos de lágrimas, voz suplicante e humilde.
—
Senhor padre! Por tudo vos peço! Ajudai-me a salvar meu pai que a tempestade
levou para o oceano! Perdoai o que nós dissemos e fizemos! Mas salvai-o
agora!
Torcia
as mãos, num desespero. Frei Bartolomeu perguntou:
—
Está sozinho?
—
Não! Leva quatro companheiros no barco!
—
Está longe?
—
Não está longe… mas o barco não aguenta mais as vagas! Salvai-o! Da janela
podeis ver o seu barquinho sacudido pela tempestade! Pedi a Deus que o salve,
senhor padre!
Frei
Bartolomeu olhou um crucifixo que trazia ao peito. Murmurou baixinho uma
oração. Depois voltou-se carinhosamente para a rapariga, que continuava
chorando.
—
Dizeis que posso vê-los da janela? Sim, lá estão eles… Que temporal horrível!
Pois esperai aqui por mim. Vou pedir a Deus que os salve. São cinco homens,
dizeis? Tende fé, e Deus os salvará!
A
jovem caiu de joelhos e assim ficou chorando, enquanto o frade saía de
mansinho.
Daí
a instantes, no sino grande do convento soaram cinco fortes badaladas, como se
fossem um sinal divino. E logo o mar se acalmou como por encanto, e os cinco
homens puderam chegar a terra sãos e salvos! Frei Bartolomeu dos Mártires, por
intermédio do Coração Divino de Jesus, conseguira salvá-los. Por cada badalada
que ele tocava, cada um dos homens sentia forças redobradas para remar e
enfrentar o temporal.
Na
casa do velho pescador já houve lugar para Deus. As ovelhas transviadas
voltaram ao seu Bom Pastor. E tudo porque um frade do convento de S. Domingos
lembrara que acima das ansiedades terrenas existe o amor de Deus. Cinco
badaladas soaram na torre do convento. Cinco homens foram salvos da fúria do
mar. Cinco almas ficaram tementes a Deus e a louvá-lo para todo o sempre!
Fonte
BiblioMARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de
Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 59-63
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