sexta-feira, 17 de junho de 2016

A cruz dos discípulos e os discípulos da cruz
























Ano C - XII domingo comum

Quem quiser ser meu discípulo, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-me.

Cinco coisas faz Cristo nas palavras deste texto:
duvida uma,
supõe outra,
e aconselha três.
A) Duvida se haverá quem o queira seguir – Quem quiser
B) Supõe que todos têm sua cruz – (tome) a sua cruz
C)E aconselha que:
C1) -  nos neguemos a nós mesmos
C2) - que tomemos nossa cruz às costas
C3) - e que vamos em seguimento seu


A)
Cuidava eu que não havia coisa mais universal no mundo que quererem todos salvar-se, mas parece que devem de ser mui poucos os que o querem, pois Cristo põe em dúvida se haveria alguém – quem quiser.
O homem preguiçoso e irresoluto quer e não quer. - Quer, porque quer o fim - não quer, porque não quer aplicar os meios - Assim somos nós: queremos e não queremos. Queremos ir ao céu, mas não queremos ir por onde se vai para o céu. No caminho do inferno se vê isto melhor. Ninguém vai ao inferno por sua vontade, e ninguém vai ao inferno senão por sua vontade. Por isso Cristo não duvida do querer, senão do querer ir após ele.
Se perguntarmos aos nossos desejos onde têm os olhos: no céu.
Se olharmos para nossas ações onde levam a proa: no inferno. Eis aqui como queremos.

B)
Supõe Cristo que todos têm sua cruz,
Por que não diz Cristo: Quem me quiser seguir tome a minha cruz - senão, tome a sua? Por que diz o Senhor que não há de dar a sua glória a outrem?
-Manda-nos Cristo que tomemos a nossa cruz, e o sigamos a ele. O exemplo há de ser seu, e a cruz há de ser nossa.
Umas vemos, outras não vemos, e as menos visíveis são ordinariamente as mais pesadas, porque são as mais interiores, e as que carregam só na alma.

C1)
E que quer dizer negue-se a si mesmo? Quer dizer que cada um há de deixar de ser o que é. Nem eu hei de ser eu, nem vós haveis de ser vós. E assim o fez S. Francisco. Negou-se de tal maneira a si mesmo, que deixou totalmente de ser o que dantes era. Pois, se Francisco não era Francisco, que era? Era Cristo.
Dizendo Cristo aos outros que o seguissem, só a S. Francisco consentiu que o igualasse. Diferença entre o seguir e o acompanhar a Cristo. O sacrifício de Abraão e o sacrifício e Paixão de Cristo. Por que não permitiu Deus que Isac chegasse a morrer? José, retrato de Cristo vendido, e Lázaro, retrato de Cristo sepultado. S. Francisco, retrato ao natural de Cristo chagado.
Que quer dizer que nos neguemos a nós mesmos? Quer dizer que nos hajamos connosco como se não fôramos nós. Eu, que me haja comigo como se não fora eu; vós, que vos hajais convosco como se não fôreis vós. Oh! que documento tão divino para o bem e para o mal! Se as nossas prosperidades nos vieram como se foram de outrem, que pouco nos haviam de desvanecer! E se as nossas adversidades as tomáramos como se não foram nossas, que pouco nos haviam de molestar! O verdadeiro amigo dizem que é outro eu; aos outros, como se fora eu, a mim como se eu fora outro.

C2)
E que leve será a cruz, a quem se tiver negado primeiro! A nossa cruz não tem mais peso que o que nós lhe damos. Se na nossa cruz nos não leváramos a nós, pouco teríamos que levar. Do peso de si mesmo, e não do da cruz, se queixava Job. - E não foi Job o que menos cruz levou neste mundo.
A causa cuido eu que é porque olhamos para os títulos das cruzes, e não para o peso delas. Pois, crede-me, que as que parecem mais para cobiçar são as que têm mais que temer. Não vedes que as mais preciosas são as mais pesadas?
E não seria melhor que, assim como a pessoa a que havemos de seguir é a de Cristo, assim a cruz que havemos de levar fosse também de Cristo? Parece que sim. Pois, por que não diz Cristo: Quem me quiser seguir, tome a minha cruz, senão, tome a sua. A razão é porque estima Cristo tanto a sua cruz, que a não quer dar a outrem. Como se dissera o Senhor: Quem quiser seguir-me, tome a cruz, mas essa cruz há de ser a sua, que a minha não a dou a ninguém. Não estimo eu tão pouco os tormentos e instrumentos de minha Paixão, que os haja de dar a outrem.
Por que não quis Cristo consigo a nenhum dos discípulos em sua Paixão? Porque queria toda a Paixão para si.
Mas, se Cristo prometeu de não dar sua glória a outrem, como a deu a S. Francisco? A palavra de Deus, ou prometendo, ou negando, é inviolável; pois, por que deu a S. Francisco o que tinha prometido de não dar a outrem? Por quê? Porque S. Francisco não era outrem. Parece paradoxo, mas no nosso texto o temos, e entra a segunda cláusula dele.
Se alguém me quiser seguir - diz Cristo - negue-se a si mesmo.

C3)
A terceira cláusula do nosso texto - que, dizendo Cristo aos outros que o seguissem, só a S. Francisco consentiu que o igualasse. Tome a sua cruz, e siga-me. - Pergunto: Por que diz siga-me, e não diz acompanhe-me? Porque quem segue fica sempre atrás, e quem acompanha bem pode ir igual,
E se não, respondam-me: Se Cristo queria dar chagas a S. Francisco, por que lhe não deu quatro somente, ou por que lhe não deu seis, senão cinco, nem mais nem menos? Porque não só lhe quis dar a imitação, senão a perfeita igualdade.
Só Francisco o igualou, porque as suas chagas não foram menos que as de Cristo, nem foram mais, senão justamente cinco, nem mais nem menos.
Mas que chagas foram estas que Cristo deu a S. Francisco? A pergunta parece mal fundada, mas a resposta vos dirá que fundamento tem. Todos dizem que as chagas que Cristo deu a S. Francisco foram as chagas de seu corpo. Eu digo que as chagas de S. Francisco não foram as chagas do corpo de Cristo, senão as chagas da sua alma.
As chagas dos pés, das mãos, e do lado de Cristo, fê-las o ódio dos judeus; mas já as tinha feito o amor dos homens muito tempo antes. - O ódio fê-las no corpo, o amor tinha-as feito na alma
De maneira que Cristo teve chagas dobradas, umas no corpo, outras na alma.
Dois pontos à vossa meditação, que são os principais que devemos considerar nestas chagas, enquanto dadas e enquanto recebidas: enquanto dadas, e enquanto chagas de Cristo, considerai quanto amou Deus aos homens; enquanto recebidas, e enquanto chagas de Francisco, considerai quanto pode um homem amar a Deus.
(Pe. António Vieira, sermão das chagas de S. Francisco, Lisboa, 1646)



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