Ao assinalar os 90 anos da morte de Fernando Pessoa quero evocar a sua memória transcrevendo algumas passagens do seu Livro do Desassossego.
A) Na curva da vida
471.
Os que morrem viraram a uma esquina, e por isso os
deixámos de ver…
B) Um transeunte a menos na quotidianidade de ruas
481.
Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de
me ser fácil
entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.
Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso
que lembra, ao rapaz
barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio
e limpo, como ia o
colega da cadeira da direita, mais velho e com
espírito, que estava doente. Perguntei-lhe sem que me
pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade
pelo local e a lembrança. "Morreu ontem", respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto penso. Não disse nada.
Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma
angústia de fuga
do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que
via habitualmente nas
minhas ruas habituais — se deixo de vê-las entristeço;
e não me foram nada, a
não ser o símbolo de toda a vida.
O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava
frequentemente
comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O
velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da
tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também
eu a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim — sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar
nestas ruas, o que outros
vagamente evocarão com um "o que será
dele?". E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo
quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.
C) Os poemas que escrever vivem sem enquanto
258.
Se
um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me
disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? É uma
coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem
enquanto.
D) Adormecer para acordar no céu
40.
Considero então que coisa é esta a que chamamos morte…
Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. E se a morte se
assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela…
A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma
partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi
embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira.
E) Um dia chegará a diligência
1
Considero a vida uma estalagem onde tenho que me
demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará.
Porque não sei nada…
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência…
Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros,
entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem,
será bem também.
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