Língua Portuguesa faz 800
anos.
D. Afonso II, em 27 de junho de 1214, escreveu um texto que pode ser
considerado um marco histórico.
Nunca antes dele, um rei, um estado, um soberano usara a nossa língua ou
escrevera oficialmente em português.
Obviamente ele não disse: decreto hoje fazer esta língua.
É um texto e não um decreto.
É apenas o seu testamento; limitou-se a usar uma língua que já existia e
já era falada pelo povo, antes de ele a usar também. (Cf. José Ribeiro e Castro, Língua portuguesa, in blog o povo)
Existem dois exemplares deste testamento, um foi enviado ao arcebispado de
Braga e o outro ao de Santiago.
As suas primeiras linhas dizem o seguinte:
En'o nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal,
seendo sano e saluo, temëte o dia de mia morte, a saude de mia alma e a proe de
mia molier raina dona Orraca e de me(us) filios e de me(us) uassalos e de todo
meu reino fiz mia mãda p(er) q(ue) depos mia morte mia molier e me(us) filios e
meu reino e me(us) uassalos e todas aq(ue)las cousas q(ue) De(us) mi deu en
poder sten en paz e en folgãcia. P(ri)meiram(en)te mãdo q(ue) meu filio infante
don Sancho q(ue) ei da raina dona Orraca agia meu reino enteg(ra)m(en)te e en
paz.
E ssi este for morto sen semmel, o maior filio q(ue) ouuer da raina dona
Orraca agia o reino entegram(en)te e en paz. E ssi filio barõ nõ ouuermos, a
maior filia q(ue) ouuuermos agia'o ...
Dou a palavra à própria língua portuguesa:
Vejam bem o que me aconteceu: eu, a língua portuguesa, uma vetusta anciã
com mais de 800 anos, fui submetida a mais uma intervenção cirúrgica. Desta vez
foi apenas uma operação plástica que parecia coisa fácil, mas que me fez
esperar, como acontece a muito boa gente, cerca de vinte anos para que chegasse
a minha vez. Na mesa das negociações, os oito cirurgiões (Portugal, Brasil,
PALOP e Timor Leste) prepararam e levaram a cabo esta cirurgia intitulada “O
novo acordo ortográfico da língua portuguesa”. Decidiram autorregular apenas o
meu visual, isto é, a minha ortografia, sem tocar noutras dimensões da minha
identidade. De tempos a tempos tenho sido submetida a várias correções para
parecer sempre jovem e bem adaptada aos tempos modernos, mas por dentro
continuo a ser a mesma senhora de outrora. O resultado desta última operação
plástica está agora à vista dos meus 230 milhões de admiradores ou aficionados.
Sinceramente acho que esta intervenção resumiu-se a uma questão de elegância,
mas… os gostos não se discutem. É por isso que nem todos concordam com esta minha
nova apresentação.
No bloco operatório foram aplicadas intervenções em
cinco áreas específicas do meu corpo: aumento do alfabeto, uso de maiúsculas e
minúsculas, hifenização, acentuação e sequências consonânticas.
Com a idade tive de
aumentar o número de letras: passei de 23 a 26. Ao fim e ao cabo apenas fizeram
o reconhecimento de três novas letras, pois já as usava há muito tempo. Ganhei assim
um charme de dama internacional.
O uso de maiúsculas e
minúsculas também ficou de acordo com o estatuto de uma idosa como eu. Com o
tempo, passei a dispensar certas mordomias e a valorizar mais a igualdade e a
simplicidade para evitar complexos de superioridade.
As sequências
consonânticas tiveram um tratamento apropriado. Foi preciso cortar certas
gorduras nos seis grupos de consoantes duplas… Estavam a ocupar lugar e não
faziam falta nenhuma. O cirurgião plástico só deixou ficar o que podia
desfigurar por completo a identidade. Quando uma consoante não é pronunciada
deixa de ser registada, pois já não tenho idade para ser uma coisa e parecer outra.
Só se escreve o que se pronuncia.
A acentuação levou também
uma ação de limpeza. Já não preciso de muitos adereços. Sou uma senhora que
dispensa apêndices, retoques, chapéus ou maquilhagem. Quanto mais simples,
melhor.
O hífen foi o que mais sofreu nesta operação plástica. Foi
doloroso cortar aqui, unir acolá, manter isto, excluir aquilo. À ordem de
eliminar o hífen seguiu-se tantas exceções… Quase entrei em paranoia. Salvou-me
a aplicação de um super-rápido anti-inflamatório. Preciso ainda de muito tempo
para assimilar todas estas transformações, regras e exceções…
Sei que não sou de tratamento fácil. A minha provecta idade,
o meu trajeto histórico, o número dos meus admiradores tornam pesada qualquer
mudança… Tudo isto dificulta a minha rápida recuperação pós-operatória. O que
mais necessito nesta altura é de apoio incondicional. Mais do que criticar o
que não ficou bem, há que dar as mãos para fazer melhor.
A quantos me adotam, só tenho uma recomendação: ler,
escrever, comunicar... Praticar, praticar, praticar! Sei que não sou idioma
fácil, mas sou a vossa herança, a riqueza de uma nação ou a vossa “pátria”, como
bem lembrou o grande Pessoa.
Sempre que me contemplo ao espelho no reflexo de cada
página escrita sinto que estas mudanças ortográficas podem parecer simples troca
de vestuário. Não é roupa nova para uma velha senhora. É muito mais do que
isso. São mudanças de visual ou uma autêntica operação plástica, porque eu, a
língua portuguesa, apesar de tão antiga quero continuar a ser jovem, moderna e
prática. Assim rejuvenescida, continuo ao dispor de todos os que me leem no
dia-a-dia.
(Adaptado de um relatório
escolar da formação de docentes sobre o novo acordo ortográfico na Escola da
APEL)
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