Gato
branco a espreitar lá do céu!
Será
o mesmo gato que um dia foi à igreja ouvir o meu sermão?
Como
o vi tão devoto, não admira que tenha ido diretamente para o céu.
(Conferir
in Foi
na Serra de Água, Bernardino Trindade e David Quintal, Grafimadeira,
Funchal, 2010, página 94-95)
Sermão
aos gatos
Estava
eu na homilia ou na prática, como se diz na minha terra. O inverno lá fora era
agreste. As pessoas encolhidas e bem abafadas nem levantavam a cabeça. A porta
meio encostada foi suficiente para deixar passar um intruso. Continuei a minha
pregação, mas com os olhos fixos no gato que avançava pelo corredor central da
igreja. Os meus ouvintes aperceberam-se e começaram a seguir com um olhar
disfarçado. Mesmo à frente do altar, o gato virou-se para o lado do ambão, onde
eu pregava. Então parou, deitou-se e devotamente dirigiu a cabeça em direção ao
pregador. Um sorriso aflorou no rosto de todos dos presentes. Eu fiquei sem
palavras, surpreendido, quer pela ousadia do felino, quer pelo atrevimento do
pessoal, que já não me dava ouvidos. Foi então que em voz alta rezei a Santo
António:
“Ó
Glorioso Santo António, vós pregastes um dia aos peixes, pois que os humanos
não vos queriam dar ouvidos, ajudai-me hoje a pregar a este gato, que nos
visitou para que os meus ouvintes se possam ver espelhados nesta figura tão
familiar, tão doméstica, mas tão edificante… - respirei fundo e continuei,
dirigindo-me ao fiel atrasado – Até que enfim, gato atento, abriste os olhos.
Não estiveste apenas 9 dias com os olhos fechados depois de nasceres, mas só
hoje conseguiste ver o caminho para chegar até aqui. Mais vale tarde do que
nunca. E aqui entraste com os olhos abertos e assim os conservas… pois rezar é
abrir os olhos da fé.
Mesmo
brincalhão e travesso, sabes comportar-te bem na Casa de Deus. É certo que
alguém estranha a tua visita, mas, mesmo assim, tiveste a coragem de enfrentar
esses preconceitos. Não te importaste com o olhar repreensivo dos presentes
para vir até aqui. Nem te contentaste, como muitos, em ficar junto à porta, a
acompanhar de longe a celebração, prontos para desandar.
Aproximaste-te
do altar do Senhor, com patinhas de lã, sem fazer barulho, sem chamar a
atenção, sem incomodar nem perturbar. Vieste para ouvir e o silêncio é uma
disposição do espírito.
As
tuas orelhas estão altivas lembrando as palavras de Jesus: Quem tem ouvidos para ouvir que oiça!
Como
sabes respeitar esse lugar! Aqui não fazes uma corcunda, não ressonas, nem te
afagas com a língua, como fazes a torto e a direito na tua casa. Aqui escutas
atentamente, olhas devotamente e rezas com todo o corpo. Não precisas de miar
ou de usar outra linguagem para rezar. Respiras apenas, pois a oração é a
respiração da alma…
Tu
nos ensinas que a presença de Deus não precisamos de fugir dos cachorros que
nos incomodam, nem precisamos de perseguir os ratos das nossas tentações. Aqui
todos somos irmãos e que ninguém tenha medo de nós.
Finalmente,
a tua presença aquece o ambiente, anima a comunidade e afugenta a solidão. Quem
nos dera sermos todos assim tão amorosos e calorosos, mas sem empatar amigo nem
exigir recompensa. Tu apenas roças, tocas ao de leve, acenas que estás perto,
tal como nós devemos ser próximos uns dos outros.
Caro
irmão gato, caros cristãos, foi este o meu sermão. Deus fará o resto.
Ámen.”
Ao
retirar-me para o altar, o piedoso intruso levantou-se e, com toda a calma,
dirigiu-se para a porta da igreja, saindo sem hesitações. A comunidade
continuava cada vez mais espantada. Ainda tive tempo de comentar:
“O
gato veio só para ouvir o padre. Ele agora foi-se porque tem pressa de pôr o
sermão em prática. Aliás, como ele está bem informado! Como antigamente, quem
ainda não era batizado só estava na celebração até ao final da pregação, pois
só podia participar na mesa da Palavra e não na mesa da Eucaristia. Este gato,
com certeza, é apenas catecúmeno…”
Sem comentários:
Enviar um comentário