sábado, 28 de junho de 2025

S. Pedro de Fernando Pessoa

SÃO PEDRO

 

Tu, que Diabo?, és velho.

És o único dos três que traz velhice

Às festas. Tuas barbas brancas

Têm contudo um ar terno

A que o teu duro olhar não dá razão.

Parece que com essas barbas brancas

Por um fenómeno de imitação

Pretendes ter um ar de Padre Eterno.

 

Carcereiro do céu, isso é o que és.

Basta ver o tamanho dessas chaves —

As que Roma cruzou no seu brasão.

Segundo aquele passo do Evangelho

Do «Tu és Pedro» etcetera (tu sabes),

Que é, afinal uma fraude

Meu velho, uma interpolação.

 

Carcereiro do céu, que chaves essas!

Nem dão vontade de ser bom na terra,

Se, segundo evangélicas promessas

Vamos parar, ao fim, a um céu claustral.

Isso — fecharem-me — não quero eu,

Nem com Deus e o que é seu

Que o estar fechado faz-me mal

Até na beatitude do teu céu,

Entre os santos do paraíso,

(A liberdade — Deus dá a Deus —

Um Deus que não sei se é o teu),

O estar fechado, aqui ou ali, dizia eu

Faz-me terríveis cócegas no juízo.

 

Enfim, que direi eu de ti, amigo,

Que não seja uma coisa morta,

Antipopular, gongórica,

Por fruste deselegante,

Como de quem, sem saber nada, exausto,

Começo por duvidar bastante,

Desculpa-me chaveiro antigo,

De que tivesses existência histórica.

 

Mas isso, é claro, não importa

Se nos trazes

A alegria da singeleza

Ou a bondade que não sabe ter tristeza.

O pior é que nada disso fazes.

O teu semblante é duro e cru

E as barbas que roubaste ao Deus que tens

Só arrancam aos dandies teus loquazes

Ditos de dandies cínicos desdéns.

Que diabo, és uma série de ninguéns.

O Santo são as chaves, e não tu.

 

Para uns és S. Pedro, o grão porteiro,

Para outros as barbas já citadas,

Para uns o tal fatídico chaveiro

Que fecha à chave as almas sublimadas.

Para uns tu fundaste a Roma do Papado

(Andavas bêbado ou enganado

Ou esqueceste

O teu posto quando o fizeste)

E para outros enfim, como é o povo

E segundo as ideias que ele faz,

És quem lhe não vem dar nada de novo —

Umas barbas com S. Pedro lá por traz.

 

É difícil tratar-te em verso ou prosa,

Tudo em ti, salvo as barbas, é incerto,

Tudo teu, salvo as chaves, não tem ser

E a alma mais humilde é clamorosa

De qualquer coisa que se possa ver,

Em sonho até, qual se estivesse perto.

 

Olha, eu confesso

Que nunca escreveria

Este vago poema, em que me apresso

Só para me ver livre do teu nada,

Se não fosse para dar um cunho

A este livro da trilogia

(Santo António, S. João, S. Pedro —

De popular, que bem que soa!)

 

Mas porque diabo de intuição errada

É que vieste parar a Junho

E a Lisboa?

Isto aqui ainda tem

Um sorriso que lhe fica bem,

Que até, até

No teu dia,

(Ó estupor velho

Como um chavelho,)

 

Nas ruas

O povo anda com alegria,

É fé,

Não em ti nem nas barbas tuas

Mas no que a alegria é.

 

Olha, acabei.

Que mais dizer-te, não sei.

Espera lá, olha

Roma, fingindo que viceja,

Lentamente se desfolha.

Teu último gesto seja

Um gesto volvente e mudo.

Se tens poder milagroso,

Se essas chaves abrem tudo,

Deixa esse céu lastimoso.

Deixa de vez esse céu,

Desce até à humanidade

E abre-lhe, enfim no mudo gesto teu,

As portas do Inferno, e da Verdade.

 

(Fernando Pessoa: Santo António, São João, São Pedro. Fernando Pessoa. (Organização de Alfredo Margarido.) Lisboa: A Regra do Jogo, 1986)

A 9 de junho de 1935, quatro dias antes de completar 47 anos, Fernando Pessoa escreveu uma série de poemas dedicados aos três santos populares — Santo António, S. João e S. Pedro. De estilo claramente popular, o tríptico não pretendia, contudo, celebrar as festas de Lisboa ou os seus santos. Pessoa quis sim contestar a mobilização e apropriação dos ‘santos populares’ lisboetas pelo Estado Novo e pela Igreja Católica, numa altura em que as celebrações mais tradicionais começavam a ser substituídas por um grande evento de propaganda do regime.

Escrito poucos meses antes da morte de Pessoa, em finais de novembro desse mesmo ano, o tríptico não chegou a ser editado durante a vida do poeta, que chegou a ponderar publicá-lo.

Segundo o próprio Fernando Pessoa, o tríptico dos santos de junho não pretendia ser popular, uma vez que foi baseado no obscuro sentimento pagão do nosso povo, que o poeta pretendia elevar a outro nível.

O último poema, “S. Pedro”, é diferente dos dois primeiros, talvez porque “aquilo que o poeta quis dizer ficou perfeitamente expresso em ‘Santo António’ e ‘S. João’.  Isto significa que o terceiro poema não tem vestígios da intentada separação dos santos populares das zonas de influência da Igreja Católica e ao Estado, que podem ser encontrados nos dois primeiros. Ao terceiro e último santo restou apenas a missão de completar a trilogia dos santos lisboetas. (Adaptação livre de um artigo de autor desconhecido).

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