terça-feira, 7 de abril de 2020

A Paixão na poesia portuguesa


A poesia da Paixão
e a Paixão na poesia

Os hinos da Liturgia das Horas da Semana Santa ou da Festa da Exaltação da Santa Cruz apresentam praticamente apenas a poesia de Frei Agostinho da Cruz (séc. XVI). Há, no entanto, outros poetas portugueses que ao longo dos séculos contemplaram o mistério da Paixão de Cristo. Aqui vão alguns exemplos para ler, reler e meditar nesta semana santa:

1º - Anónimo do século XVI-XVII

Se sois riqueza, como estais despido?
Se omnipotente, como desprezado?
Se rei, como de espinhos coroado?
Se forte, como estais enfraquecido?

Se luz, como a luz tendes perdido?
Se sol divino, como eclipsado?
Se Verbo, como é que estais calado?
Se vida, como estais amortecido?

Se Deus? estais como homem nessa cruz?
Se homem? Como dais a um ladrão,
com tão grande poder posse dos céus?

Ah, que sois Deus e Homem, bom Jesus!
Morrendo por Adão enquanto Adão,
e redimindo Adão enquanto Deus.


2º - Baltazar Estaço, século XVII
A morte de Cristo

Aqui onde venceu a morte a vida,
aqui vencido tem a vida à morte,
aqui onde subiu mais alto a morte,
aqui a fez descer mais baixo a vida.

Aqui onde matou a morte à vida,
aqui morta deixou a vida à morte,
aqui onde se viu mais dura a morte,
aqui também se vê mais forte a vida.

Pra que pudésseis dar tão alta vida,
quisestes padecer tão baixa morte;
assim que em vossa morte tenho vida,

pois sendo vossa a vida e vossa a morte,
com vossa vida compro a doce vida,
com a vossa morte pago a dura morte.


3º - Barbosa du Bocage, + 1805
À paixão de Jesus Cristo

O filho do grão rei, que a monarquia
tem lá nos céus e que de si procede,
hoje mudo e submisso à fúria cede
de um povo, que foi seu, que à morte o guia.

De trevas, de pavor se veste o dia,
inchado o mar o seu limite excede,
convulsa a terra por mil bocas pede
vingança de tão nova tirania.

Sacrílego mortal, que espanto ordenas,
que ignoto horror, que lúgubre aparato!...
Tu julgas teu juiz!... Teu Deus condenas!

Ah! Castigai, Senhor, o mundo ingrato;
caiam-lhe as maldições, chovam-lhe as penas,
também eu morra, que também vos mato.


4º - Antero de Quental, + 1891
A um crucifixo

Não se perdeu teu sangue generoso
nem padeceste em vão, quem quer que foste,
plebeu antigo, que amarrado ao poste
morreste como vil e faccioso.

Desse sangue maldito e ignominioso
surgiu armada uma invencível hoste…
Paz aos homens e guerra aos deuses! – pôs-te
em vão sobre o altar o vulgo ocioso…

Do pobre que protesta foste a imagem:
um povo em ti começa, um homem novo;
de ti data essa trágica linhagem.

Por isso nós, a Plebe, ao pensar nisto,
lembraremos, herdeiros desse povo,
que entre nossos avós se conta Cristo.


5º João de Deus, + 1896
crucifixo

Minha mãe, quem é aquele
pregado naquela cruz?
- Aquele, filho, é Jesus…
É a santa imagem d’Ele.

- E quem é Jesus? – É Deus!
- E quem é Deus? – Quem nos cria,
quem nos manda a luz do dia
e fez a terra e os céus,

e veio ensinar à gente
que todos somos irmãos
e devemos dar as mãos
uns aos outros, irmãmente:

todo amor, todo bondade!
- E morreu? – Para mostrar
que a gente, pela verdade,
se de deixar matar.


6º - Gomes Leal, + 1921
O último golpe de lança

Quando ele, enfim, morrendo, ele, o cordeiro,
rola mansa no ar calado e imundo,
pendeu, bem como um lírio moribundo,
sobre a haste do trágico madeiro…

Quando, lançando o espírito profundo
ao reino belo, grande, verdadeiro,
caiu, enfim, chagado, justiceiro,
ainda, ainda perdoando ao Mundo…

Um soldado romano, vendo-o exposto
e já morto na Cruz, lívido o rosto,
com um golpe de lança o trespassou.

Saiu daquela chaga sangue e água:
- Sangue que inda quis dar a tanta mágoa.
- Água de pranto ainda que chorou!


7º - Cantos populares Portugueses

Tocam os sinos em Mafra,
ai Jesus! Quem morreria?
Foi Cristo nosso Senhor,
filho da Virgem Maria.

Se passares pelo adro
tirai o chapéu à cruz,
que deveis considerar
que nela morreu Jesus.

O Senhor quando morreu
logo fez seu testamento,
p’ra memória nos deixou
o Santíssimo Sacramento.

Eu subi ó altar mor
p’ra ver o Senhor Jesus,
e puze-me de joelhos,
p’r’ó aliviar da cruz.

Oh almas, se tendes sede
vinde ao Calvário a beber,
que o meu Deus tem cinco fonte
todas cinco a correr.


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