quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Duas faces

5ª feira, XXIII semana comum


A) As faces de Jesus
Jesus ia pelo desfiladeiro de Afiq com um dos seus discípulos. Um homem atravessou-se-lhes no caminho e impediu-os de continuarem dizendo:
- Não vos deixarei passar sem ter dado uma pancada a cada um.
Tentaram dissuadi-lo, mas ele obstinou-se.
Jesus disse:
- Aqui tens a minha face. Bate-lhe.
O homem esbofeteou-o e deixou-o passar. Depois disse ao discípulo:
- Não te deixarei passar enquanto não te bater também.
O discípulo recusou. Vendo isso, Jesus ofereceu-lhe a outra face. O homem bateu-lhe e permitiu que ambos passassem. (Cf. Ahmad ibn Hanbal +855)

B) As nossas faces
Alguns irmãos foram ao encontro do Aba Antão para lhe perguntarem o seguinte:
- Diz-nos uma coisa: Como podemos ser salvos?
O ancião respondeu:
- Escutais as Escrituras? Elas só vos podem fazer bem.
Eles retorquiram:
- Queremos escutá-las da vossa boca, Pai.
Então o ancião disse-lhes:
- O Evangelho diz o seguinte: Se alguém te bater na face direita, oferece também a outra face.
Eles responderam:
- Nós não podemos fazer isso.
- Se não podeis oferecer a outra face, aceitai ao menos que vos batam numa das faces.
- Mas nem isso nós podemos fazer.
- Então se também não o podeis fazer - disse ele - pelo menos não pagueis o mal com o mal.
Eles responderam:
- Nem mesmo isso podemos fazer.
Então o velho disse a um dos discípulos:
- Prepara umas papas de farinha e dá-lhes de comer, porque eles estão doentes. Se não podeis fazer nem uma coisa nem outra, que posso eu fazer por vós? Vós precisais é de remédio e de oração. (Cf. Marcel Driot, Os padres do deserto)




terça-feira, 8 de setembro de 2015

Aurora da salvação

Festa do Nascimento da Virgem Maria

Celebramos hoje o nascimento; mas que nascimento celebramos?
Se o perguntarmos à Igreja, responde que o nascimento de Maria; se consultarmos o Evangelho, lemos nele o nascimento de Jesus: O nascimento de Jesus deu-se do seguinte modo.
Se a Igreja celebrara neste dia o nascimento glorioso de Cristo, muito acomodado Evangelho nos mandava ler; mas o dia e o nascimento que festejamos não é o do Filho, é o da Mãe. Pois se ainda hoje nasce a Mãe, como nos mostra já a igreja e o Evangelho não a Mãe, senão o Filho nascido?
O sol, se bem advertirdes, tem dois nascimentos: um nascimento com que nasce quando nasce, e outro nascimento com que nasce antes de nascer.
Aquela primeira luz da manhã que apaga ou acende as sombras da noite, cuja luz é?
É luz do sol.
E esse sol então está já nascido?
Não e sim.
Não, porque ainda não está nascido em si mesmo.
Sim, porque já está nascido na sua luz.
De sorte que naturalmente veem os nossos olhos ao sol duas vezes nascido: nascido quando nasce, e nascido antes de nascer.
Provo a consequência, porque o sol tem dois nascimentos: um nascimento quando vem arraiando aquela primeira luz da manhã a que chamamos aurora; outro nascimento quando o sol descobre, ou acaba de desaparecer em si mesmo.
E como o sol não só nasce quando nasce em si mesmo, senão também quando nasce na sua luz.
Um nascimento do sol é quando nasce em si mesmo e aparece sobre a terra; o outro nascimento é antes de nascer em si mesmo, quando nasce e aparece a sua luz. É o que estamos vendo neste dia, e o que nos está pregando a Igreja neste Evangelho.
O dia mostra-nos nascida a luz, o Evangelho mostra-nos nascido o sol, e tudo é.
Não é o dia em que o sol apareceu nascido sobre a terra, mas é o dia em que aparece nascido na luz da sua aurora porque, se o sol não está ainda nascido em si mesmo, já está nascido na luz de que há de nascer.
Agora pergunto eu, se alguém me não entendeu ainda: quem é este sol duas vezes nascido? E quem é esta luz de que se formou este sol? O sol é Jesus, a luz é Maria. E não era necessário que ele o dissesse. Assim como o sol nasceu duas vezes, e teve dois dias de nascimento; assim como o sol nasceu uma vez quando nascido e outra antes de nascer; assim como o sol uma vez nasceu em si mesmo, e outra na sua luz; assim, nem mais nem menos, o sol Divino, Cristo, nasceu duas vezes e teve dois dias de nascimento. Um dia em que nasceu em Belém, outro em que nasceu em Nazaré.
Um dia em que nasceu quando nascido, que foi em vinte e cinco de dezembro, e outro dia em que nasceu antes de nascer, que foi neste venturoso dia.
Um dia em que nasceu de sua Mãe, outro dia em que nasceu com ela.
Um dia em que nasceu em si mesmo, outro dia em que nasceu naquela de quem nasceu.
Suposto que temos neste Evangelho dois nascidos, e nesse nascimento dois nascimentos: o nascimento da luz, Maria, nascida em si mesma, e o nascimento do sol, Cristo, nascido na sua luz, qual destes nascimentos faz mais alegre este dia?
E por qual deles o devemos mais festejar?
Por dia do nascimento da luz, ou por dia do nascimento do sol?
Com licença do mesmo sol, ou com lisonja sua, digo que por dia do nascimento da luz.
E por quê?
Não por uma razão, nem por duas, senão por muitas. Só quatro apontarei, porque desejo ser breve.
Primeira razão: porque a luz é mais privilegiada que o sol. Segunda: porque é mais benigna.
Terceira: porque é mais universal.
Quarta: porque é mais apressada para nosso bem.
Por todos estes títulos é mais para festejar este dia por dia do nascimento da luz, que por dia, ou por véspera, do nascimento do sol.
Primeira razão: a luz é mais privilegiada que o sol.
A luz, e não o sol, é a chave que abre as portas do dia. O dia é filho da luz e não do sol.
Começando pelo primeiro título, de ser a luz mais privilegiada, digo que é mais privilegiada a luz que o sol, porque o dia, que é a vida e a formosura do mundo, não o faz o nascimento do sol, senão o nascimento da luz.
Tenho advertido que o que primeiro abre e faz o dia, é o nascimento da luz, e não o do sol6. Está esta grande máquina e variedade do universo coberta de trevas, está o mundo todo fechado no cárcere da noite, e qual é a chave que abre as portas ao dia? O sol? Não, senão a luz, porque ao aparecer do sol, já o mundo está patente e descoberto: O sol faz o dia mais claro, mas a luz é a que faz o dia. E se não, vede quantas vezes acontece forrar-se o céu de nuvens espessas, com que não aparece o sol, nem o menor de seus raios, e contudo, ainda que não vemos o sol, vemos o dia. Por quê? Porque no-lo mostra a luz. Bem se segue logo que o dia, tão necessário e tão proveitoso ao mundo, é filho da luz, e não filho do sol.
Segunda razão: a luz é mais benigna que o sol.
O segundo título por que se deve mais festejar o dia deste nascimento é por ser a luz mais benigna. É a luz mais benigna que o sol, porque o sol alumia, mas abrasa; a luz alumia e não ofende.
Quereis ver a diferença da luz ao sol? Olhai para o mesmo sol e para a mesma luz de que ele nasce, a aurora. A aurora é o riso do céu, a alegria dos campos, a respiração das flores, a harmonia das aves, a vida e alento do mundo. Começa a sair e a crescer o sol, eis o gesto agradável do mundo e a composição da mesma natureza toda mudada. O céu acende-se, os campos secam-se, as flores murcham-se, as aves emudecem, os animais buscam as covas, os homens as sombras. E se Deus não cortara a carreira ao sol, com a interposição da noite, fervera e abrasara-se a terra, arderam as plantas, secaram-se os rios, sumiram-se as fontes. A razão natural desta diferença é porque o sol, como dizem os filósofos, ou verdadeiramente é fogo, ou de natureza mui semelhante ao fogo, elemento terrível, bravo, indômito, abrasador, executivo, e consumidor de tudo. Pelo contrário, a luz em sua pureza, é uma qualidade branda, suave, amiga, enfim, criada para companheira e instrumento da vista, sem ofensa dos olhos, que são em toda a organização do corpo humano a parte mais humana, mais delicada e mais mimosa.
Terceira razão: a luz é mais universal; o sol é limitado no tempo e no lugar.
O terceiro título, por que se deve mais festejar o dia deste nascimento, é por ser a luz mais universal. É a luz mais universal que o sol porque o sol nunca alumia mais que meio mundo e meio tempo; a luz alumia em todo o tempo e a todo o mundo. O sol nunca alumia mais que meio mundo, porque quando amanhece para nós, anoitece para os nossos antípodas, e quando amanhece aos antípodas, anoitece para nós. E nunca alumia mais que meio tempo, porque das vinte e quatro horas do dia natural as doze assiste em um hemisfério, as doze no outro. Não assim a luz. A luz não tem limitação de tempo nem de lugar: sempre alumia, e sempre em toda parte, e sempre a todos. Onde está o sol, alumia com o sol, onde está a lua, alumia com a lua, e onde não há sol nem lua, alumia com as estrelas, mas sempre alumia. De sorte que não há parte do mundo, nem movimento de tempo, ou seja dia ou seja noite, em que, maior ou menor, não haja sempre luz. Tal foi a disposição de Deus no princípio do mundo. Ao sol limitou-lhe Deus a jurisdição no tempo e no lugar; à luz não lhe deu jurisdição limitada, senão absoluta para todo o lugar e para todo o tempo. Ao sol limitou-lhe Deus tempo, porque mandou que alumiasse o dia e limitou-lhe lugar, porque só quis que andasse dentro dos trópicos de Câncer e Capricórnio, e que deles não saísse. Porém à luz, não lhe limitou tempo, porque mandou que alumiasse de dia por meio do sol, e de noite por meio da lua e das estrelas.
Quarta e última razão: a diligência de Maria.
O quarto e último título porque se deve mais festejar este dia, é por ser a luz mais apressada para nosso bem. Ser mais apressada a luz que o sol, é verdade que veem os olhos. Parte o sol do oriente e chega ao ocidente em doze horas. Aparece no oriente a luz, e em um instante fere o ocidente oposto, e se dilata e se estende por todos os horizontes, alumiando em um momento o mundo. O sol, como dizem os astrólogos, corre em cada hora trezentas e oitenta mil léguas. Grande correr! Mas toda esta pressa e ligeireza do sol, em comparação da luz, são vagares. O sol faz seu cursa em horas, em dias, em anos, em séculos; a luz sempre em um instante. O sol, no inverno, parece que anda mais tardo no amanhecer, e no verão mais diligente, mas nunca se levanta tão cedo o sol, que não madrugue a luz muito diante dele. Ó luz divina, como vos pareceis nesta diligência à luz natural!
Esse é o dia, cristãos, de despachar estas petições:
Peçamos hoje luz para nossas trevas, peçamos luz para nossas escuridades, peçamos luz para nossas cegueiras, luz com que conheçamos a Deus, luz com que conheçamos o mundo, e luz com que nos conheçamos a nós. Abramos as portas à luz para que alumie nossas casas; abramos os olhos à luz, para que alumie nossos corações; abramos os corações à luz, para que more perpetuamente neles.
Venhamos, venhamos a buscar luz a esta fonte de luz, e levemos daqui cheias de luz nossas almas. Com esta luz saberemos por onde havemos de ir; com esta luz conheceremos donde nos havemos de guardar; com esta luz, enfim, chegaremos àquela luz onde mora Deus, a que o apóstolo chamou luz inacessível que só por meio da luz que hoje nasce, se pode chegar à vista do sol que dela nasceu: Jesus.
(Pe. António Vieira, SERMÃO DO NASCIMENTO DA VIRGEM MARIA DEBAIXO DA INVOCAÇÃO DE N. SENHORA DA LUZ, TÍTULO DA IGREJA E COLÉGIO DA COMPANHIA DE JESUS, NA CIDADE DE S. LUÍS DO MARANHÃO. ANO DE 1657)