sábado, 11 de maio de 2019

Pintar uma vocação

O pintor italiano barroco, Caravaggio, concluiu em 1599-1600 a tela da Vocação de Mateus para a Capela de São Luís dos Franceses, em Roma.
Inspirou-se em Mt 9,9 – Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado ao telónio, e disse-lhe: segue-me. Ele levantou-se e seguiu-o.





















Apresentamos alguns pormenores ou curiosidades desta pintura. São apenas alguns exemplos, pois muitos outras poderão ser sugeridos e que poderão ser uma frutuosa reflexão sobre qualquer espécie de vocação.

A pintura divide-se em dois planos: Um superior composto por luz e sombra com uma janela ao centro. A claridade não vem da janela, mas de fora, do canto superior direito. O outro plano é composto por dois grupos de personagens que se orientam da sombra para a luz. O plano superior é assim o resumo ou o reflexo do plano inferior e vice-versa.
A luz que incide sobre Mateus, o chamado, vem de fora, não da janela, nem do próprio Jesus, pois vem de fora do quadro (escolhido desde toda a eternidade).

O ambiente retrata o telónio ou o lugar de cobrança e de contagem de impostos, mas mais parece uma taberna, ou lugar de pecadores e publicanos.
Ressalta assim o contraste entre a riqueza, a ganância e o antro de pecadores. Jesus era amigo de todos e com todos se relacionava.
Apesar de faltarem os copos e o vinho não falta o ambiente ébrio à volta da mesa.

Em cena estão dois grupos de personagens.
O primeiro grupo é composto por Jesus e por Pedro, ambos de pé e descalços. De Jesus apenas é visível o rosto, a mão direita e os pés. Fazem um retângulo vertical, grupo espiritual, não acomodado, de passagem, peregrino, transcendente.
O segundo grupo está à esquerda e é composto por cinco personagens, todos sentados à volta de uma mesa, acomodados ou bem instalados, incluindo Mateus. Fazem um retângulo horizontal, grupo terreno, em processo abertura para a direita.
Entre os dois grupos existe um vazio escuro. É a mão direita de Jesus que faz a ligação dos dois espaços.

A mão de Jesus é parecida com a que foi pintada por Miguel Ângelo na Criação de Adão. Em todo o caso, a mão de Jesus aqui não tem os dedos enérgicos do Pai, mais parece a frouxa mão de Adão (Cristo feito homem, novo Adão).
Cristo parece dizer, ao apontar: Tu, segue-me.
Esta eleição é como uma criação ou novo nascimento.
Também Pedro faz o mesmo gesto de Jesus… Ele está a seguir o Mestre e está a representar a igreja que recebe o mandato de continuar as mesmas obras de Jesus.

Os pés de Jesus encontram-se já em direção à saída. É a caminhar, ou em movimento, que Jesus chama Mateus (tal como ao caminhar na praia chamou Pedro e André, Tiago e João). Está perto da porta, encaminhando-se para a saída, como quem diz que não há tempo a perder, porque há muito a fazer. A linguagem do amor é aqui e agora, sem adiamentos ou hesitações.

Os cinco personagens à volta da mesa têm idades diferentes, parecem amigos ou cúmplices. Vestem-se todos luxuosamente contrastando com a modéstia, simplicidade de Jesus e de Pedro que até estão descalços.

Quem é Mateus?
Há duas hipóteses e parece que o pintor deixou a composição ambígua, cabendo ao observador a escolha ou a decisão (já que se trata de uma vocação ou escolha).

A primeira hipótese identifica Mateus com o homem mais velho de barbas que aponta para si, como se questionasse sobre ser ele ou não o escolhido por Jesus. O seu gesto é traduzido como: - Quem, Eu?
Junto de Mateus estão dois amigos também surpresos pelo convite. Voltam-se curiosos para Jesus, um com intenção de proteger Mateus, pois coloca o braço sobre o seu ombro. O outro mostra-se pronto para defendê-lo, ostentando uma espada à cintura.
Outros dois amigos continuam entretidos na contagem do dinheiro, mostrando assim que continuavam ao serviço de outro senhor que é o dinheiro (não podeis servir a dois senhores…)
Estas quatro personagens retratam a complexidade da personalidade de Mateus. Ele está dividido nestes dois grupos: por um lado curioso, mas pronto para proteger-se ou defender-se) e por outro lado identifica-se com os que continuam entretidos, incapaz de deixar essa vida para seguir uma nova luz.

Uma outra hipótese identifica Mateus com o jovem no extremo esquerdo da mesa, ocupado com a contagem das moedas. De facto, Mateus estava em plena ação do seu ofício quando foi abordado por Jesus. Neste caso, o homem de barbas estaria a apontar para o jovem Mateus, querendo dizer: - Quem, ele? É o pior de todos!...
Sabemos que os que conheciam Mateus ficaram espantado pela sua eleição para seguir o Mestre Jesus.
Mateus estaria então cabisbaixo com as moedas nas mãos, nos olhos e no coração. Essa atitude é também ambígua: tanto pode ser sinal de que estava ocupado como pode ser sinal de vergonha. O certo é que ele deixou o dinheiro como seu senhor para seguir outro Senhor.

Finalmente, podemos observar que o pintor retratou as personagens ao estilo do século em que as pintou e não ao tempo de Jesus. Porquê?
Não foi apenas por uma questão de escola, moda, estilo ou anacronismo.
É para que nos lembremos que a história de Mateus é a nossa história. Todos somos como Mateus, pois Mateus veste-se tal como nós, como um homem de cada tempo.

E tal como ontem, hoje e sempre, quando Jesus passa, deixa um caminho de luz e tudo fica diferente: uns envergonham-se, outros questionam-se, estes procuram proteção, aqueles justificação, mas todos… todos devem sentir-se diferentes porque amados por Ele.


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