segunda-feira, 16 de julho de 2012

Acerca das Letras (II)


II

            Depois da epopeia bíblica, as letras cristãs, gregas e latinas, formam dois tesouros incomparáveis.
            Os nossos pais na fé não abordam de imediato todos os géneros, não têm tempo para tal; mas nos géneros que abordam, são desde logo superiores.
            Trata-se de conquistar o mundo para as ideias cristãs: eles escrevem apologias, discursos, tratados de filosofia e de religião. Eles negligenciam a poesia.
            Não pensam no teatro. É surpreendente?
            Oferecem-nos antes de mais nada a eloquência de fogo dos mártires, as suas respostas inspiradas e ardentes de fé e de caridade que por vezes convertem os seus próprios juízes e os seus algozes. As actas de São Sebastião, de Santa Perpétua, de Santa Inês, de Santa Cecília, as cartas de Santo Inácio de Antioquia, oferecem páginas admiráveis que não têm comparação no paganismo.
            Mas foi na arte oratória que os gregos cristãos alcançaram sem contestação o primeiro lugar.
            Basta citar Santo Atanásio, São Basílio, São Gregório de Nazianzo, São João Crisóstomo.
            “As alegações de Santo Atanásio, diz Bossuet, são obras-primas de eloquência e de saber.”
            São Gregório de Nazianzo foi comparado a Isócrato, que parece ser o imitador. Soube aliar a doutrina mais profunda à graça e aos movimentos do estilo.
            As cartas que trocaram os dois santos amigos, Basílio e Gregório de Nazianzo, são também graciosas obras-primas onde se misturam os encantos de uma imaginação oriental com os de uma delicada sensibilidade de coração.
            Mas o rei da eloquência é Crisóstomo, o tipo de orador tão nobre quanto popular. Ele tem de Cícero a graça e a facúndia, e de Horácio a riqueza das imagens e a fidelidade das expressões.
            Os latinos não deram menos glória à Igreja do que os gregos nas letras.
            Tertuliano tem algo de rude na expressão, mas que vasta erudição, que força de dialéctica, que energia de estilo! É um prazer lê-lo; vence-se com elo o erro, gosta-se dele, porque percebe-se que ama a verdade com um coração de fogo.
            São Cipriano é um orador mais completo. A sua eloquência é mais doce e mais plena.
            Santo Ambrósio, diz Châteaubriand, é o Fénelon dos Padres da Igreja, como Tertuliano é o Bossuet.
            Ele foi também poeta, e os seus hinos, de uma simplicidade tão nobre e tão tocante, são uma das riquezas da nossa liturgia.
            São Jerónimo desdenhou por vezes a pureza da dicção, mas o seu estilo é vigoroso e grande como o seu carácter, e o seu coração palpita nas palavras. Ele seduz e alenta.
            São Leão Magno é um clássico. A sua dicção é pura, abundante e harmoniosa.
            Mas o mais prodigioso entre os padres Latinos é Santo Agostinho. Ele ocupa com Tomás de Aquino o cume do espírito humano.
            Que génio foi tão profundo e tão universal?
            Que importa, como anota Bossuet, que ele tenha incorrecções, se se impõe sobre todos pela grandeza, projecção e profundidade dos pensamentos? Domina todas as ciências que aborda: a história na “Cidade de Deus”; a teologia nos seus tratados sobre a graça e sobre a Sagrada Escritura; a filosofia nas suas controvérsias; a própria arte nalguns dos seus pequenos tratados; e as mais delicadas análises psicológicas nas suas Confissões e nas suas Meditações.
            Esta época dos Doutores da Igreja não pode ser avaliada com a mesma medida com que se avalia o século de Péricles e o século de Augusto. Ela não gozou da paz dos espíritos que permite apurar a literatura e a arte.
            É uma época de luta, de polémica, de propaganda e de conquista intelectual. Ela ultrapassa todas as outras nos géneros que lhe são próprios, o que é bastante para a glória da Igreja.
            Para completar o estudo dos Padres Latinos, convém dizer uma palavra ainda sobre São Bernardo, São Tomás de Aquino, São Boaventura e o seu século. Eles completam bem o ciclo de escritores cristãos de língua latina.
            São Bernardo é ao mesmo tempo o escritor místico, o poeta sagrado e o orador gracioso e persuasivo.
            São Boaventura é sábio, simples e piedoso.
            São Tomás de Aquino é o espírito mais vasto, o mais completo, o mais claro, o mais metódico que nos deu a grande família humana.
            Ele possuía e dominava Aristóteles. Conhecia Platão através de Santo Agostinho fortemente influenciado por ele. Permanecerá talvez até ao fim como o mestre dos Doutores da Igreja.
            Os Padres do século IV e do século V são como grandes convertidos. Devem uma parte da sua grandeza às letras pagãs, que tinham estudado durante a sua infância.
            Dá-se com eles o mesmo que com as basílicas de Constantino, que nos mostram a arte romana adaptada ao espírito cristão.
            A Idade Média é mais pura de qualquer influência. São Tomás, São Bernardo, Dante, são o fruto da seiva cristã sem mescla, como as nossas catedrais, as nossas epopeias nacionais, a nossa cavalaria e as piedosas figuras dos nossos vidreiros e dos nossos pintores anteriores ao Renascimento.




Sem comentários: