sexta-feira, 13 de julho de 2012

Acerca das Letras (I)

SEGUNDO DISCURSO
ACERCA DAS LETRAS CRISTÃS[1]
           

            Senhores,

            Dirijo-me aqui a amigos da nossa obra, a amigos da educação e da instrução cristãs; e nem deveria deter-me a demonstrar a sua grandeza e a superioridade. Mas, nestes tempos de agitação e de luta, a verdade é com frequência atacada, acusada, desfigurada, a ponto de até aqueles que a conhecem serem obrigados a reposicionar-se pela reflexão e pelo raciocínio, para não se deixar arrastar e raptar pelo sofisma.
            Todas as nossas posições são sucessivamente atacadas. Os nossos adversários atacam tanto a educação cristã, como o patriotismo cristão, como a moral cristã, como as letras cristãs.
            Hoje, é sobre este último ponto que queremos aceitar o desafio. Comprazem-se em desacreditar as letras cristãs e afirmar a pobreza e a inferioridade manifesta da nossa literatura.
            Ora bem, nós pensamos o contrário que a literatura cristã não tem nada a invejar às letras pagãs, e que se, por vezes, ela dá menos importância ao acabado da forma, ela impõe-se infinitamente pela elevação do pensamento e pela pureza dos sentimentos.
            Assim é com as letras cristãs com a arte cristã: As nossas grandes catedrais com as legiões de santos dos seus portais e dos seus vitrais, são menos perfeitas do que as do Partenon de Atenas e os seus frisos, mas o Partenon deixa a alma em terra, ao passo que as nossas catedrais cristãs levam-na até ao céu.
            Lancemos o olhar à grande epopeia bíblica, às literaturas grega e latina, e por fim às letras francesas.
É sempre proveitoso seguir CRISTO num ou noutro dos seus triunfos; a este contacto a alma cristã eleva-se, sente a sua grandeza e a sua nobreza; dela extrai emulação, coragem e alegria; expande-se num hino piedoso de louvor e de glória a DEUS e a CRISTO.

I
            Nós poderíamos responder sumariamente à objecção banal e por demais grosseira que nos colocam cada dia a respeito do obscurantismo clerical e da ciência laica. Bastará citar algumas linhas muito divertidas de um discurso de Monsenhor Freppel aos alunos de uma instituição eclesiástica.
            “É verdade, dizia ele, que os vossos mestres não são laicos, para falar em calão de hoje; mas, peço desculpa a uma parte do meu auditório, convém, não abusar desta palavra convertendo-a em certificado de capacidade, e supor que basta dizer-se laico para ser um homem instruído ou pertencer ao mundo eclesiástico para não sê-lo.
            Bossuet, Fénelon, Malebranche, Massilon e Bourdaloue, sabiam supostamente ler e escrever, e não eram laicos. Roger Bacon, Gervert, Albert o Grande, Copérnico e Gassendi, para só falar de mortos, fazem muito boa figura nas ciências naturais e exactas, e não eram laicos.
            Por outro lado, pretendo dizer que há ainda na França centenas de milhar de homens que não sabem ler, nem escrever, e lamento acrescentar que são todos laicos. Deixemos lá estes epítetos que não fazem sentido, que são até profundamente ridículos, quando se trata do saber e da instrução. Apreciemos a ciência e a virtude onde elas se encontram.”
            Mas a tese da superioridade das letras cristãs merece ser tratada com mais amplitude, e de receber um maior desenvolvimento.
            É um campo sem limites aberto ao nosso estudo. Não faremos mais do que respigar, tratando sumariamente alguns pontos indicados. Não bastou aos exploradores de Israel levar aos seus irmãos do deserto alguns cachos maravilhosos para provar a fecundidade da Terra Prometida?
            Comecemos por considerar a grande epopeia bíblica.
            O que é uma epopeia?
            Não é porventura um vasto poema que exalta a fé e os heróis das origens de uma nação?
            Pois bem! Não é a epopeia bíblica o poema, que narra as lutas e os triunfos de CRISTO para a fundação da Jerusalém celeste?
            Há como que três grandes actos nesta gesta, a mais sublime e a mais dramática que se pode conceber. O primeiro é CRISTO prometido, prefigurado, esperado, preparado. É todo o Antigo Testamento com a sua maravilhosa variedade.
            O segundo, é CRISTO realizado, vivo, morto, ressuscitado e conquistando o mundo através da Igreja e da Eucaristia; no texto sagrado, é o Evangelho com os Actos e as Epístolas.
            O terceiro, é o Triunfo definitivo de CRISTO na Jerusalém celeste com todos os companheiros das suas lutas e das suas vitórias. E este acto foi antevisto pelo apóstolo de olhar de águia, no seu Apocalipse.
            São Paulo, na sua magistral Epístola aos Hebreus, dá a chave do drama. Antes de nós, diz ele, tudo era figura e preparação. Agora, as coisas encontram-se ainda na sombra ou debaixo do véu, é o Reino de CRISTO escondido na Eucaristia e na Igreja. Mais tarde, será a luz plena e nós veremos CRISTO triunfante.
            E como tudo é maravilhoso nesta epopeia sublime, perante a qual as outras me parecem tão pequenas!
            Que variedade! E que unidade! Todo o poema canta a glória de CRISTO e dos seus eleitos.
            Pela grandeza dos pensamentos, ninguém hesita em proclamar a eminente superioridade da epopeia bíblica, mas pela própria forma literária, que livro oferece mais esplendores e riqueza?
            Reparemos as suas diversas partes.
            Primeiro a obra de Moisés.
            Moisés escrevia mil anos antes de Heródoto, o primeiro historiador grego, muitos séculos antes que algum poeta produzisse uma linha destinada à posteridade.
            Bossuet saúda Moisés “o mais antigo dos poetas e o seu modelo, o primeiro dos historiadores, o mais sublime dos filósofos e o mais sábio dos legisladores”.
            Os livros de Moisés impressionam-nos pela beleza dos quadros e descrições, e pelo interesse tão dramático das narrações. Quem não se emocionou com o relato das vicissitudes de José? É um drama completo cujo desfecho mostra o triunfo da virtude.
            Quem não leu com interesse as narrativas movimentadas do êxodo do Egipto e os milagres do Sinai? Moisés é aí, ao mesmo tempo, a testemunha, o herói e o historiador. É poeta muito especialmente no seu cântico após a passagem do Mar Vermelho e no discurso profético de Jacob.
            Quanto a acção de Moisés como filósofo e legislador excede a dos maiores génios do paganismo, Platão, Licurgo, Sólon, Cícero!
            Os outros livros históricos da Bíblia, como os dos Juízes, dos Reis, dos Macabeus, sem igualar os livros de Moisés, oferecem-nos no entanto autênticas belezas.
            É no livro dos Juízes que se lê o belo cântico de vitória de Débora, o apólogo gracioso das árvores que escolhem um rei, e o episódio tocante da filha de Jefté, reproduzido na Ifigenia dos gregos.
            É no livro dos Reis que se descreve a amizade tão emocionante de David e Jónatas, junto da qual a de Oreste e de Pylade, de Castor e Pollux, empalidecem.
            No livro dos Macabeus, que sublime quadro da luta do patriotismo e da fé contra a invasão estrangeira e a escravidão! Como Bruto e os Gracos são ultrapassados por estes heróis!
            Os livros de histórias particulares, as hagiografias de Rute, Judite, Tobias e Ester, oferecem-nos narrações atraentes e uma pintura fiel dos costumes da época.
            O livro de Rute, atribuído ao profeta Samuel, é uma deliciosa écloga cuja perfeição sem igual provocou a admiração do próprio Voltaire. Ele reconheceu nela a simplicidade ingénua e comovedora que nenhuma cena de Homero seria capaz de igualar.
            O livro de Tobias, o mais popular do Antigo Testamento, parece não ser mais do que a recolha das memórias dos dois próprios Tobias. Ele reúne as graças de uma amável simplicidade e de uma elevação tão celeste.
            Os livros Sapienciais deixam a perder de vista os livros análogos dos gregos. Nestas páginas tão graciosas como profundas, todos os recursos da arte são utilizados sem pretensões nem afectação. Não são figuras, alegorias, contrastes e imagens umas atrás das outras. José de Maistre fazia notar como Sócrates era pequeno ao lado do Livro da Sabedoria.
            Mas é sobretudo na poesia que a literatura sagrada mostra a sua excelência.
            Bossuet chamava os Salmos: “a mais divina poesia que jamais existiu.”
            Não foi nos livros sagrados que os poetas modernos encontraram as suas mais sublimes inspirações? Eles mesmos apontaram esta fonte como o seu Parnaso e o seu Peneo. Fontanes dizia: “O entusiasmo habita nas margens do Jordão.” Não é o cenário onde estes cantos nasceram e formaram a expressão do entusiasmo duma nação, também mais grandioso do que a solenidade dos jogos de Corinto ou de Olímpia? Eram estas festas anuais da Páscoa, do Pentecostes e dos Tabernáculos, em que todo um povo ia, com todo o ardor da sua fé, misturar as torrentes das suas vozes inumeráveis com os concertos da harpa e do saltério, enquanto os sacerdotes imolavam as vítimas e o Pontífice levava misteriosamente o incenso ao Santo dos Santos.
            Os Salmos exprimem sentimentos que sempre corresponderão às vibrações dos corações que possuem a verdade. Jamais passarão.
            Píndaro cantou os heróis e as cidades da Grécia. Horácio celebrou os prazeres e os deuses dos Romanos. Lê-se-os com curiosidade. Não se canta com eles. Canta-se sempre com David. A sua lira fará eternamente vibrar as almas para exprimir a bondade de Deus, a glória de CRISTO, a alegria dos justos e o castigo dos ímpios.
            O livro de Job não é menos sublime na sua profunda filosofia e nas suas descrições da natureza. Os seus quadros estão, como dizia Mons. Villemain, todas frementes de poesias.
            Entre os profetas, Isaías não tem igual. Não será ele, quiçá, o primeiro escritor do mundo? Bossuet, antes de escrever, relia uma página de Isaías para aí encontrar o sopro sagrado. Se Racine superou nos seus coros todos os autores líricos, é porque se aproximou de Isaías imitando-o.
            Não podemos multiplicar mais estes apontamentos.
            A epopeia bíblica, ultrapassa as outras, na medida em que o seu assunto domina os factos que os poetas profanos cantavam.
            O que é a tomada de Tróia pelos Gregos ou a conquista do Lácio por Eneias, ao lado do grande drama de CRISTO, conquistando ao seu eterno inimigo, o demónio, a terra e depois o céu?





[1] Discurso pronunciado na grande sala de festas do Patronato, 5 de Agosto de 1878, V. “A Semana Religiosa da Diocese de Soissons e Laon”, 5º Ano, 1878, pp. 445-446, Instituição São João, em São Quintino.

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