sábado, 7 de julho de 2012

Acerca da Educação (II)


II

         Digamos agora o que devem ser, no nosso entender, os instrumentos da educação cristã, os mestres que a distribuem, os livros de que se servem.
         O mestre desempenha, frente ao seu discípulo, a acção de uma verdadeira paternidade espiritual. Ele gera nele verdadeiramente vida e a semelhança da sua alma. A vida intelectual e moral derrama-se da alma do educador para a alma do seu aluno por duas fontes: a palavra e o exemplo. Ele comunica-lhe os seus pensamentos. Revela-lhe o verdadeiro, tal como a sua inteligência o concebe; o belo, tal como ele o compreende e o que ele aprendeu a amar; o bem tal como a sua consciência lho dita.
         Apontar tal missão, é por assim dizer a sua responsabilidade e ao mesmo tempo a sua nobreza. Também entendo que as famílias cristãs sejam exigentes face àqueles que elas aceitam como segundos pais para as almas dos seus filhos.
         Não basta que eles sejam pessoas normalmente virtuosas, e a fama de homem honesto não é para eles, um bilhete de que nos possamos dar por satisfeitos. É preciso que sejam grandes cristãos, de maneira que a criança sinta de alguma maneira, em toda a sua pessoa, o Mestre dos mestres, o CRISTO que eles representam e cuja dignidade os reveste.
         E se, com tudo o que eu acabo de supor, o educador católico recebeu do céu uma vocação que não só o convida à prática do dever mas ao heroísmo da virtude; se ele fez o juramento, não somente da honestidade, mas da santidade; se ele acrescenta a dignidade que lhe vem da sua missão a grandeza que recebeu da unção divina e de um carácter sagrado, oh! então ninguém pode dizer o que produzirá na criança esta acção poderosa e eleva-se acima da natureza.
         Não quer dizer com isso que só o padre pode dar à infância o benefício da educação cristã. Todo o homem profundamente cristão, padre ou leigo, religioso ou secular é suficiente, mas um cristão não pode negar que a entrega especial a JESUS CRISTO, resultante da unção sacerdotal ou dos votos religiosos, não seja, em geral, na educação uma força e uma vantagem suplementar.
         Este facto tem sido admitido inclusivamente por educadores laicos imparciais. Eis aqui, por exemplo, alguns pensamentos expressos por um professor da Faculdade numa obra coroada pela Academia.[1]
         “Há certamente muito a dizer em favor do ensino ministrado e dirigido por eclesiásticos ou por religiosos. A nossa preferência pelo ensino laico não nos impede de reconhecer vantagens consideráveis sobre alguns pontos que o seu carácter assegura aos professores eclesiásticos. A independência absoluta frente ao mundo, a supressão de todos os laços que unem cada um de nós à família e à sociedade civil, a renúncia a todo o interesse terreno, a ruptura com as paixões perturbadoras que desgastam as energias e devoram o tempo, a solidão e a paz que impedem a dispersão do pensamento sobre as curiosidades do mundo e as vicissitudes da vida, e que permitem à reflexão concentrar-se num único objecto; a elevação do pensamento necessariamente familiar a quem quer que creia trabalhar para a eternidade; o hábito da disciplina que é mais fácil impor aos outros quando se é o primeiro a conformar-se com ela; enfim, e acima de tudo, a força moral, a autoridade que nunca é maior do que no homem que se esquece de si mesmo para falar e actuar em nome da divindade: eis as condições favoráveis em que estão situados o padre ou o religioso que se torna professor.”
         Não seríamos capazes de referir melhor as vantagens do ensino eclesiástico.
         Outro professor eminente da Universidade [2] prestava igual justiça à abnegação, à dedicação, ao zelo profissional dos sacerdotes e dos religiosos na educação, zelo sem o qual o mestre mais hábil e mais distinto é impotente para fazer o bem, e apresentava, entre outros motivos, o seguinte: “é difícil aproximar a juventude sem a amar, e isso é tanto mais possível para os homens que renunciaram à sua família natural: eles encontram aquilo que perderam.”
         Há nisto alguma verdade. É, de facto, nestas condições que vimos até vós. Independentes face ao mundo, despojados de qualquer interesse pessoal, seremos tudo para a nossa obra, tudo para os vossos filhos. Trabalhando para eles, acreditamos que trabalhamos para Deus. Eis o segredo da nossa dedicação, os segredos do ardor e do zelo que pomos em ajudar os vossos filhos na sua formação para que correspondam às vossas expectativas e às de Deus que no-los confia.
         Sem insistir mais no ideal do mestre segundo a nossa perspectiva, falemos do que pensamos sobre os livros, que são eles também como mestres e instrumentos de educação.
         O livro é um dos conselheiros da criança. Ele segue-a a cada passo. Ensina com o mestre e contra ele. Ele influencia consideravelmente a sua alma de discípulo.
         Voltando aos nossos anos passados, quem de entre vós não encontra, na sua alma, a marca profunda de algum livro a que atribui a orientação do seu espírito, determinada ideia predominante na sua vida.
         E para só falar de influências inocentes, uma criança encontrará no relato impressionante de náufragos fabulosos nalguma ilha maravilhosa, o gosto pelas aventuras que toma como uma vocação para enfrentar os perigos do mar. Nós conhecemos estes marinheiros improvisados, que, graças a este género de leituras, se declaram decididos numa idade em que ainda não puderam reflectir. Entretanto a ternura inquieta das suas mães agita-se à volta dos seus projectos ameaçadores. Felizmente a experiência intervém para impor aos seus desejos prematuros, e estes heróis, que se contam às centenas no princípio da adolescência, vêem pouco a pouco os seus planos clarificarem-se. Então as reais aptidões aparecem, as vocações sérias desenham-se, e a vida melhor ponderada toma a sua verdadeira direcção.
         Mas poderão os conselhos da sabedoria, úteis nestas circunstâncias, ser sempre dirigidos com fruto a espíritos profundamente marcados por um outro género de leituras? Suponhamos que a razão da criança seja tomada desde cedo pela falsidade, que as noções da justiça sejam subvertidas no seu espírito, que as suas paixões sejam despertadas por imagens suspeitas, e que o seu coração seja desviado por escritos maldosos que circulam, com a atracção do mistério, por entre os alunos de certas casas, a sabedoria dos pais e dos mestres não terá somente de lutar contra os erros de uma imaginação juvenil e desprevenida; o combate será mais sério e a vitória menos garantida, porque não se trata de discutir esta ou aquela forma acidental da vida, mas de arrancar a própria vida de uma direcção funesta.
         Este perigo pode encontrar-se no próprio ensino e nas leituras de lazer que acompanham o ensino. No ensino, há o elemento pagão que deve ser apresentado com prudência.
         Os autores profanos ocupam um amplo espaço nos nossos programas oficiais, um espaço demasiado grande. O Conselho superior de educação pública, em 1875, tinha feito justiça, se bem que muito imperfeitamente ainda, aos clássicos cristãos colocando-os no programa do terceiro ano para o grego, e no segundo ano para o latim, e incluindo-os entre os autores da licenciatura.
         A Igreja quereria o ensino misto destas duas literaturas, que têm cada uma as suas obras-primas e pertencem a civilizações diferentes; mas quereria também que o ensino dos autores profanos fosse rodeado de precauções preventivas muito especiais[3].
         Não é o belo o esplendor da verdade, segundo a definição de Platão? Da mesma maneira que o belo, na ordem natural, próprio da civilização pagã, se encontra na primeira literatura latina, o mesmo belo, o sublime, natural e sobrenatural, abunda e resplandece na segunda.
         Não é a arte de bem-falar, considerada na sua origem primitiva, uma maravilhosa emanação do Verbo de Deus, da Palavra de Deus Pai? Como se poderá então crer que o Verbo encarnado, tenha dignado dispensar o dom da palavra às nações que não O conhecem, O tenha depois recusado à Igreja, a sua esposa, conquistada com o preço do seu precioso sangue?
         A Igreja nunca excluiu do ensino os autores profanos. Com a sua prática tal como com a sua doutrina, ensinou-nos que eles podem ser auxiliares da verdade, admitindo-os em concorrência com os autores cristãos.
         Não é vantajoso estudar o belo e o sublime onde quer que eles se encontrem? Devemos ter em consideração homens de génio, mesmo se não tenham tido a felicidade de professar a verdade completa. Homero e Virgílio serão sempre objecto de admiração, enquanto a poesia continuar a ser uma das preocupações do género humano; e enquanto for preciso ensinar as normas da eloquência, os modelos indicados serão sempre Demóstenes e Cícero.
         Tal tem sido, indiscutivelmente, o ensino tradicional e constante da Igreja[4].
         “Os livros profanos, dizia São Basílio o Grande, são para os Livros santos o que a folhagem da árvore é para os frutos: precedem-nos, cobrem também e servem-lhes de adorno”[5]. E este santo doutor admirava, na literatura profana, não somente a forma brilhante e a perfeição do estilo, mas ainda a beleza dos exemplos e a elevação dos pensamentos. Pedia sempre que se fizesse uma escolha de autores, e que se os lesse como as abelhas actuam nas flores recolhendo delas apenas o mel. Mas queria, ele também, que fossem auxiliares da verdade e que se fossem estudados conjuntamente com os autores cristãos.
         O seu sentimento faz-se autoridade na Igreja. “O costume constante na Igreja, lembrava-nos ainda recentemente o nosso venerado pontífice Pio IX [6], é ensinar o latim aos jovens pelo estudo misto de autores sagrados e profanos”.
         Ninguém põe em dúvida que essa foi a prática dos primeiros séculos da época dos doutores da Igreja. Na própria Idade Média, a Igreja, nas escolas monásticas, manteve o uso dos grandes clássicos pagãos com o dos autores cristãos.
         Se Carlos Magno pôde reanimar o culto da literatura e produzir, com a ajuda de Alcuim, um primeiro renascimento, foi porque encontrou em Roma, nas escolas pontifícias, tradições, mestres e livros que só teve de levar para a França, sabe-se que se trata das obras de arte das literaturas grega e latina conjuntamente com os principais escritos dos Padres da Igreja.
O nosso grande século clássico, o século XVII, não procedeu de maneira diferente. Os autores cristãos eram a base do ensino. Os autores profanos juntavam-se-lhes, como convém, no fim dos estudos.
Fénelon não é suspeito, com certeza, de ignorância ou de desprezo pelos clássicos, e sabe-se que rumo deu à educação do duque de Borbonha. Começou por fazê-lo estudar os Livros sapienciais da Sagrada Escritura, depois alguns livros escolhidos de S. Jerónimo, de Santo Agostinho, de S. Cipriano, de Santo Ambrósio, algumas poesias de Prudêncio e de S. Paulino e a História de Sulpício Severo[7]. Só depois destes primeiros estudos é que o iniciou nas letras pagãs, ensinando-lhe a colocá-las ao serviço da sabedoria pagã, como exemplifica no seu Télémaque e nos seus Diálogos dos Mortos.
É assim que se deveria usar a literatura profana, para que sirva a fé e não a destrua.
Nós estamos hoje longe disso. Os estudantes dos nossos colégios chegam ao seguinte resultado: conhecem melhor a mitologia do que a História Sagrada, os factos e as gestas dos deuses do paganismo do que dos heróis cristãos.
Montalembert fazia notar na introdução ao seu belo livro sobre os monges do ocidente: “Não saímos todos do colégio, dizia ele, sabendo de cor os traços pouco edificantes da história de Júpiter, e ignorando até o nome dos fundadores destas ordens religiosas que civilizaram a Europa e tantas vezes salvaram a Igreja?”
Nós reagiremos contra este abuso na medida do possível, tendo em conta os programas que nos impõem os exames.
Quanto às leituras de lazer, estaremos atentos para que sejam escolhidas com uma delicada prudência, a fim de que não pequem nem por excesso de seriedade nem de infantilidade. Não gostamos nem dos espíritos levianos nem dos doutores demasiado precoces. A infância é a primavera da vida. É mais a idade das flores do que dos frutos. O florescimento e a frescura são-lhe mais convenientes do que a maturidade. Deus dá frequentemente à criança a beleza, e a sua ingénua bondade é como um perfume que alegra.
Possamos nós ser, aos olhos das nossas crianças, dignos instrumentos de CRISTO! Possamos nós responder a tão bela missão e possuir, com as qualidades do mestre cristão, algo de particularmente elevado, suave e puro, que não pode deixar de vir-nos da imitação do amável Apóstolo tão devotado às crianças e a união especial ao Sagrado Coração de JESUS, este Coração tão amigo das crianças e tão cheio de graças para elas!



[1] G. Comoayré, História crítica das doutrinas da educação na França.
[2] M. Bersot, Estudos sobre o sec. XVIII, 1855, pag 224 e seg.
[3] Ver o breve de Pio IX a Mons. D’Avanzo, de 1 de Abril de 1875.
[4] Ver, sobre o assunto, a carta do cardeal d’Avanzo de 4 de Novembro de 1874, que é um verdadeiro tratado sobre a matéria. (Livraria da Sociedade de S. Paulo).
[5] Discurso sobre a utilidade que os jovens podem tirar da leitura dos autores profanos.
[6] Breve a Mons. D’Avanzo, de 1 de Abril de 1875.
[7] Carta ao abade Fleury, citado pelos Arquivos das Missões científicas, Agosto de 1850.

Sem comentários: