quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Se eu não tiver a caridade


4ª feira – XXIV semana comum

Testemunho de Fernando Pessoa

 

Ali não havia electricidade.

Por isso foi à luz de uma vela mortiça

Que li, inserto na cama,

O que estava à mão para ler —

A Bíblia, em português (coisa curiosa!), feita para protestantes

E reli a «Primeira Epístola aos Coríntios».

Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província

Fazia um grande barulho ao contrário,

Dava-me uma tendência do choro para a desolação.

A «Primeira Epístola aos Coríntios»...

Relia-se à luz de uma vela subitamente antiquíssima,

E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim...

 

Sou nada...

Sou uma ficção...

Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?

«Se eu não tivesse a caridade».

E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,

A grande mensagem com que a alma é livre...

«Se eu não tivesse a caridade»...

Meu Deus, e eu que não tenho a caridade!...

 

CF. 20-12-1934, Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993)

13/06/1888 - Lisboa - 30/11/1935

Ver também:

Dançar ou chorar com Jesus

Chorar ou cantar

Aspirai às coisas do alto

Cântico de amor

 

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