quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O Predileto


 Do Sermão de São João Evangelista, pregado na Capela Real, em 1644 pelo Pe. António Vieira:

O valor de São João aos olhos de Jesus

“Ao pé da cruz, foi São João Evangelista deixado em herança, e, a meu ver, este é um dos grandes louvores do discípulo amado: ser amigo de quem pode deixar em herança. Um dos grandes escândalos que tenho do mundo é por que se não há de deixar em testamento os amigos? Na morte os homens deixam em herança todos os bens, e por essa mesma razão parece que haviam de deixar em testamento os próprios amigos em primeiro lugar porque, entre todos os bens, nenhum bem há maior que os amigos, e entre todas as coisas nossas, nenhuma é mais nossa que os amigos. Pois, de os amigos são os nossos maiores bens e os bens mais nossos por que não os deixamos por testamento? A razão é esta: porque os bens que deixamos em herança e podem ser herdados são aqueles que permanecem depois da morte, e os amigos ainda que sejam os nossos maiores bens, são bens que se acabam com a vida. O maior amigo permanece até à morte: depois da morte ninguém é amigo…

E como as amizades humanas são bens que não permanecem depois da morte, por isso os homens não deixam em testamento estes bens, por isso se não deixam os amigos em testamento. Só São João Evangelista foi exceção desta regra.  Fez Cristo o seu testamento na hora da morte, e a principal herança de que deixou foi São João… Sabia que o amor do seu discípulo predileto não havia de acabar com a vida: por isso foi a herança principal do seu testamento… e deixou-o à sua mãe.

Quando Cristo fez o seu testamento na cruz teve duas coisas para legar: deixou como testamento o reino e São João. E a quem deixou estes dois legados? O reino ou o paraíso deixou-o a Dimas, o bom ladrão. São João foi deixado à sua mãe. Pois, como assim, Senhor, parece que se haviam de trocar os testamentos: o discípulo bastava deixá-lo a um amigo; o paraíso convinha deixá-lo, à Mãe. Pois, por que deixa o discípulo à Mãe, e o paraíso a Dimas? Porque a quem Cristo amava mais era bem que deixasse João; e a Dimas a quem amava menos, deixou o paraíso, porque muito menor herança era o paraíso do que João…

À Mãe, a quem amava mais, deu João; a Dimas, a quem amava menos deu o reino, porque, pondo em fiel balança, de uma parte o paraíso do céu, de outra parte a João, entendeu Cristo que dava mais a sua Mãe em lhe dar João, do que a Dimas em lhe dar o paraíso.

E o maior elogio que se pode fazer a um protegido de Jesus: João fez muitas coisas grandes sem Cristo visivelmente presente, enquanto Cristo não fez as maiores coisas sem João…

São João sem Cristo venceu os tormentos de Roma; sem Cristo bebeu os venenos de Éfeso; sem Cristo padeceu os desterros de Patmos; sem Cristo converteu e reduziu a Cristo a Ásia; sem Cristo ensinou todo o mundo e propagou a lei do amor de Cristo. Grandes coisas fez São João sem Cristo. Pelo contrário, Cristo com João apenas fez coisa grande. Fez Cristo o primeiro milagre nas bodas e aí estava São João; ressuscitou Cristo a filha do chefe da sinagoga e levou consigo São João; instituiu Cristo a Eucaristia, que foi a maior das suas maravilhas e tinha São João sobre o seu peito; transfigurou-se Cristo no Tabor e São João assistiu àquela glória; derramou sangue Cristo no Horto e São João acompanhou-o naquela pena; enfim, remiu Cristo o mundo morrendo na cruz e não teve outrem a seu lado, senão São João…”

Também nós somos os discípulos prediletos de Jesus. A seus olhos nós valemos muito, tanto como valia São João.

Também nós podemos fazer maravilhas, ou melhor, Deus pode fazer maravilhas agindo em nós.

 

 

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