Quarto Capítulo da Primeira Biografia do Pe. Dehon em Português
Pauperes evangelizantur
Em 16 de novembro de 1871, a cidade de
Saint-Quentin (Soissons) tinha um novo vigário: o R. Padre Dehon. Era o sétimo
Vigário daquela cidade, o recém-chegado.
Uma alcova sempre no alto e uma grande
visão diante dos olhos: a basílica magnífica e a “cidade inteira a que era
preciso valer, dizia com tristeza o moço sacerdote, mas seria necessário a
ajuda do estado, da opinião pública, e do clero” (Diário). Trinta mil almas,
muita pobreza económica e espiritual, nenhuma instituição para proteger a
mocidade que vive em misérrimas casas dos arredores. O que se apresentava à sua
alma era então propriamente o contrário do que sempre sonhara: “uma vida de
recolhimento e de estudo” (Diário). Mas não devia ele escrever mais tarde que o
culto ao S. Coração de Jesus há de começar na vida mística das almas, e descer
depois até penetrar na vida social dos povos, para levar um supremo remédio às
cruéis doenças do mundo? (Il Regno del S. Cuore, 1879) Otium sanctum quaerit
charitas veritatis, diz S. Agostino (de Civit. Dei. XIX, c. 19), regotium
justum suscipit necessitas charitatis.
Perante as tormentosas necessidades
que a caridade nos mostra, sacrificar-se-ão também os santos ócios a que a
verdade nos convida.
O novo Vigário de Saint Quentin
pronuncia com todo o coração o seu primeiro “Fiat”. “Pesa-me não poder
aproveitar a excecional preparação recebida nos meus longos estudos. O
ministério da cidade impõe aos jovens Sacerdotes demasiado trabalho material.
Para entrar na jerarquia e por obediência, sacrifiquei todo o meu gosto pelos
estudos, pus de parte toda a minha preparação superior, recebida em Paris e em
Roma” (Diário). Mas de resto: “Nada faz tão bem como fazer o bem”, disse Legouvé.
O jovem Vigário, experimentá-lo-á de dia para dia, em contacto com os humildes
que consola e socorre, perto das crianças que recolhe e instrui; no seu “patronato
S. José”, que abre com quarenta rapazes, no mês de junho de 1872, e que no mês
de janeiro de 1873 já conta 200 e no ano seguinte 227, e mais 74 aspirantes; na
direção do Conselho Protetor da Assistência Operária Católica de Saint Quentin;
nos numerosos congressos de estudos sociais que ele próprio promove… É tudo uma
eflorescência de Obras, uma magnífica atividade que não arrefece por se sentir
isolado, não se assusta com as oposições, não deixa de avançar pelas
incompreensões que encontra. “Estava tudo por fazer; mas eu era só. A
organização das nossas grandes freguesias não deixa os padres fazer apostolado.
Quando os nossos pobres Sacerdotes têm de assistir a funerais, o seu tempo e a
sua atividade ficam esgotados. Podemos viver assim muitos séculos sem renovar a
sociedade cristã… E tudo foi organizado neste sentido: ofícios, pregações,
associações. E depois fica-se espantado se o povo diz que a religião é só feita
para mulheres e rapazes. Esta geração pusilânime transformou o Cristo! Não é já
entre os pecadores, os publicanos, “Pauperes evangelizantur”, o <Cristo que
exercia o seu constante apostolado entre os pecadores, os publicanos e os
homens mundanos” (Diário).
Com que zelo, por isso, ele havia de
exclamar: “Ide aos vivos, ide ao povo, ide aos homens!” (Diário).
Este jovem a quem chamam fanático
revolucionário socialista, é, ao contrário, um precursor daquelas doutrinas das
quais será defensor, divulgador incansável, quando o Papa Leão XIII as
consagrar nas suas imortais encíclicas, lançando a palavra de ordem Prodire ad
populum (ir aos povos)!.
Um trabalhador, um lutador, um amigo
dos pequenos, dos humildes, dos pobres! Cronologicamente é o último Vigário de
Saint Quentin. O Cardeal Binet podia dizer: “Qual é a grande iniciativa em
Saint Quentin, sob o aspeto religioso, em que não apareça a obra, e sobretudo,
o grande espírito do Pe. Dehon (Serv. Fun.)
***
Ainda não falámos duma outra missão do
Pe. Dehon: missão que pode ser secundária, mas que. Ao contrário. É
providencial, constante chamamento à secreta aspiração que a predileção de Deus
há muitos anos lhe tinha feito germinar no seu coração: “Eu tive a vocação
religiosa desde a adolescência. Era sempre a conclusão dos meus retiros. Mas
não via com clareza, qual a comunidade que devia escolher. Andava à procura e
ia esperando. A mais viva inclinação era o S. Coração e a Reparação”
(Memórias).
Em julho de 1873, as Escravas do S.
Coração estabeleceram-se em Sainte Quentin e o jovem Vigário foi logo eleito
seu confessor e diretor espiritual. O fim da recente Congregação era: “Uma vida
de Amor puro e de Imolação ao S. Coração de Jesus, com inteiro oferecimento de
todas as orações e obras ao divino Coração e por meio do zelo em fazer amar e
consolar! Palavras que pareiam tiradas inteiramente das Constituições dos
Padres do S. Coração de Jesus, e que bem indicam o espírito que o Padre Dehon
infiltrará no ânimo dos seus filhos. De parte a parte se desejava que uma Obra
de Sacerdotes se juntasse à destas almas generosas, vivendo e espalhando o
ideal, perfeitamente, segundo as necessidades da época e dos desejos do S.
Coração de Jesus. Mons. Fava, Bispo de Grenoble, escrevia o Pe. Dehon: “Esta
ideia da Reparação foi sempre e em toda a parte inspirada à Igreja pelo
Espírito Santo”. E a veneranda Madre Fundadora das Escravas: “Vós sabeis melhor
do que eu – escrevia – quanto é necessária a Reparação, nestes tempos, e quanto
o S. Coração de Jesus a deseja para alcançarmos graças e misericórdias…
Parece-me que seriam precisas também, amas sacerdotais para esta reparação: mas
Nosso Senhor manifestará a Sua vontade, neste sentido, na ocasião própria.
Espero-o e desejo-o, para sua maior Glória e triunfo da S. madre Igreja.”
Há quanto tempo começara a ardes esta luz!... Por quanto tempo esperou ele uma resposta à insistente oração: “Domine, quid me vis facere?” (Senhor o que queres que eu faça?). Até agora tinha trabalhado tanto pelos pobres, pelos humildes, os benjamins do S. Coração de Jesus! Agora que a luz está a nascer, agora que a voz de Deus se manifesta claramente, jamais os abandonará. Voltará para eles, mas não irá só. Voltará com uma multidão sempre crescente de apóstolos, aos quais deixará um programa sagrado, como testamento de um pai, como os desejos do Céu: “A instrução dos rapazes, o ministério entre os pequenos e os humildes, entre os trabalhadores, os pobres e as Missões longínquas que requerem amor e sacrifício” (Memórias). Mas tudo isso não há de ser mais que o desabrochar da caridade que abrasa a alma, o cálix cheio, a derramar, a sede ardente da amizade do S. Coração que se aproxima e pede Amor, Consolação e Reparação.
(Continua)
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